sábado, 31 de dezembro de 2011

                              
MENSAGEM PARA HARRY POTTER

     ((16/6/2012.)  AVISO: Não deve ler todo este texto quem não sabe o fim de Harry Potter e as Relíquias da Morte, o sétimo livro da série, a menos que queira saber qual das personagens Harry e Voldemortvence.  Contudo, a partir do terceiro parágrafo não há perigo, embora a curiosidade possa ser traiçoeira e fazer com que os olhos "escorreguem" para os parágrafos "proibidos", que são os dois primeiros.  Deverá o leitor, portanto, ter autocontrole, se não quiser saber coisas que estão nos livros que ainda não leu.)

             Teresópolis, 27 de julho de 2011.                          

      Prezado Harry:

     Muito lhe sou grato por suas peripécias.  Se não fosse por elas, jamais, nesta era tão cientifizada pelos trouxas, o nome de Nicolau Flamel e a lenda da Pedra Filosofal poderiam rever a luz do dia, e eu nunca me interessaria tanto por eles.  O mesmo vale para as vassouras, para os gatos que leem placas, para os carros voadores, para o hipogrifo, para os enigmas e jogos de palavras, para os duelos de varinha, para as poções, para a busca pela verdade típica dos romances policiais, para a necessidade de lutar pelo que é certo, para a importância de não aceitar coniventemente o que dizem os jornais, para a necessidade de enxergar o que há por detrás da ordem vigente, para a necessidade de mais tolerância, para a luta contra a tirania, etc.
     Imagino que esteja agora levando uma vida tranquila (excluindo o fato de que se tornou auror) desde 1998 ao lado de Gina, Tiago, Alvo e Lílian; mas saiba que seus atos jamais serão esquecidos por nós, trouxas.  São tantas as coisas que fez.  No primeiro ano em Hogwarts, você impediu que aquela magnífica gema, a Pedra Filosofal, caísse em mãos erradas; no segundo, destruiu o diário de Riddle, com o qual ele podia comandar o basilisco, cuja função era matar os chamados sangues-ruins; no terceiro, descobriu quem havia traído seus pais na época em que Voldemort ascendia ao poder; no quarto, depois de enfrentá-lo disposto a morrer — coisa que ele jamais faria, já que temia a morte mais que tudo — avisou à comunidade bruxa o seu retorno; no quinto, foi oprimido e ridicularizado por ela, mas no fim acreditou em você; no sexto, descobriu o que tinha de fazer para matar Voldemort, enquanto ele e seus seguidores ameaçavam famílias e assassinavam pessoas; e, finalmente, munido das informações do maior bruxo que conhecera, pôs-se a fazer o que devia para liquidar seu inimigo e restaurar o mínimo de justiça, e conseguiu — porém não porque fosse mais forte ou mais inteligente que ele, e sim porque você estava certo, e ele, errado.  Contudo, o seu maior feito foi fazer uma geração gostar de ler — e ler é um exercício da imaginação, e também um estímulo do pensamento crítico. 
     Obviamente há, por assim dizer, os trouxas (fools) que dizem bobagens sobre você. (Pessoalmente, não gosto de gírias, mas esta, que a meu ver cai muito bem nas versões brasileiras de seus livros como tradução de muggles, é perfeita para caracterizar os parvos que o menosprezam categoricamente.)  Basicamente, dividem-se os seus detratores em dois grupos: o dos que o acusam de bruxaria, e o dos que o acusam de não passar de fancaria literária.  Portanto, há os que o criticam tão só por causa do conteúdo, e há os que o criticam por causa da forma; mas tanto por uma coisa como pela outra você se salva.  Ora, qualquer mentecapto que tentar fazer um de seus feitiços verá que é uma absurdeza dizer que você incentiva a bruxaria.  Não sei como são os antipótteres ingleses, mas os de meu país, o Brasil, ainda que encontrem adesão, não têm tanta influência: neste país, desde cedo ouvimos falar da Cuca e de macumba.  Quanto às acusações de fancaria literária, estas partem justamente dos que não leem suas histórias.  O estilo de sua mãe pode agradar aos mais diversos gostos: é preciso apenas enxergá-lo.  O estilo artístico — e não o estilo no sentido amplo da palavra — é o que se consegue pela estilística, “o conjunto de regras pela obediência das quais se obtém o estilo” (Diógenes Magalhães, Redação com base na linguística (e não na gramática), pág. 55), e ele está presente em suas histórias.  Do ponto de vista da linguística, sua mãe só “errou” ao usar o pronome you indevidamente.  Lemos, no início da edição britânica do seu primeiro livro, o seguinte: “They were the last people you'd expected to be involved in anything strange or mysterious, because they just didn't hold with such nonsense.”  Não sei como os outros tradutores verteram esta frase, mas na tradução brasileira, feita por Lia Wyler — mulher pela qual tenho profunda admiração — o pronome você (que se traduz em inglês por you) não aparece: “Eram as últimas pessoas que se esperaria que se envolvessem em alguma coisa estranha ou misteriosa, porque simplesmente não compactuavam com esse tipo de bobagem.”  (Faço aqui a retroversão, que para você será mera paráfrase: “They were the last people someone had expected to be involved in anything strange or mysterious, because they just didn't hold with such nonsense.”)  Por mais onisciente que seja o narrador, não pode ele dizer o que um leitor específico esperaria.  Podemos raciocinar assim: Se uma mulher me falasse:
     — Quando você dá à luz, sente muita dor.
     Eu poderia muito bem responder:
     — Eu não!  Não sou mulher!
     Agora: se ela falasse:
     — Quando a mulher dá à luz, sente muita dor.
     Eu responderia:
     — Quando o parto é por vias normais, sim.
     (Não sei que meios têm os bruxos para fazer o parto de bebês, porque não sei o quanto a medicina de vocês avançou, mas as mulheres trouxas ainda sofrem um pouco quando escolhem não ter a barriga cortada, embora haja anestesia local.)
     Há outro exemplo do mau uso do pronome you, que se encontra na página 98 da edição britânica do primeiro livro, mas o que aí fica basta.  Entretanto, essa linguagem não estraga o registro de sua história, pois está repleto de construções sofisticadas (ainda que existam exemplos do mau uso do gerúndio).  Devo dizer, porém, que fico feliz pelo fato de a tradutora Lia Wyler, apesar de fiel, não ter sido servil (afinal, o que se traduz é a ideia, e não a palavra): ela não usou o pronome você de maneira inadequada.  Por outro lado, na versão dela se lê CAPÍTULO UM, mesmo que o ideal seja CAPÍTULO PRIMEIRO, e também se lê “os Potter”, “os Weasley”, “os Malfoy”: Deveriam ser usados os numerais ordinais, e os sobrenomes deveriam ficar no plural; assim: os PóttereS, os WeasleyS, os MalfoyS.  (Isto é culpa dos jornalistas brasileiros, que pensam que sobrenomes não têm plural, e espalharam a moda de usá-los sempre no singular.)  Talvez seja difícil entender, já que sua língua materna é o inglês, mas ninguém aí, na Grã-Bretanha, diz:  “the Potter”, quando se refere a todos os integrantes de sua família: todos dizem: “the PotterS”.  Nesse país, ao que me parece, todos podem ler: CHAPTER ONE, em seus livros, mas aqui muito melhor seria se se lesse: CAPÍTULO PRIMEIRO, que equivale a FIRST CHAPTER.  Mas o pior de tudo é saber que até ao momento em que isto escrevo os erros de tradução, como o que está presente na página 259 da edição brasileira do sétimo livro, em que se lê a palavra dementadores (dementors) no lugar da expressão Comensais da Morte (Death Eaters), não foram corrigidos, já que não recebem atenção da editora e dos revisores brasileiros, cuja incompetência só não supera o espírito de porco
     Sabemos que não foi fácil traduzir você.  Lia Wyler bem disse que trabalhou na mais negra escuridão enquanto transladava a narração de sua história: não saber dos fatos com antecedência deve ter sido um obstáculo que ela nunca havia enfrentado por tanto tempo, posto que sua história foi publicada no Brasil aos poucos durante quase uma década (como aconteceu em outros países).  (Imagino que os vertedores lusitanos tenham enfrentado os mesmos problemas, pois isso aconteceu com todos os seus tradutores, mas gostaria de que ficasse bem claro que os leitores lusitanos podem apreciar a tradução brasileira de Harry Potter, e vice-versa: a língua falada e escrita no Brasil é a mesma falada e escrita em Portugal.  Afinal, não existe dicionário de Português Brasileiro—Português Lusitano, assim como não existe dicionário de Inglês Britânico—Inglês Norte-americano.  Muito embora nenhum dos países a que me refiro seja um todo linguístico (nenhum lugar é), a língua é a mesma no Brasil e em Portugal: há apenas preferências na escolha de palavras, pois o vocabulário ativo (o que usamos ao falar ou ao escrever), o passivo (o que não usamos, mas reconhecemos) e o ignoto (o que não conhecemos) sofre variação de pessoa para pessoa e de região para região.  (Isto é o que afirma o já citado professor Diógenes Magalhães, em Redação com base na linguística (e não na gramática).)  O que é diferente, portanto, não é a língua, e sim a maneira de usá-la.  Se alguém lhe disser que no Brasil se fala “brasileiro”, você fará muito bem se azarar esse alguém, ou se então perguntar como se conta de um a cem nessa língua imaginária.)  Entretanto, o maior inimigo de Lia Wyler, a meu ver, foi a pressa e a ganância desmedidas dos empresários, que não se preocupam com a arte de traduzir nem com a arte de contar histórias.  Contudo, graças a ela, posso dizer que seus livros são cheios de descrições de cenários fantásticos e de situações extraordinárias, e também são repletos de cartas, avisos, letras de canções, neologismos e diálogos entre inferiores e superiores hierárquicos.  Se tudo isto é fancaria literária, muitos outros livros consagrados como clássicos também são.
     Apesar de haver uma chance de sua mãe nunca fazer parte do grupo de “autores de nomeada”, ela tem muito talento.  Leiamos um trecho do seu quarto livro:
     “A polícia nunca vira um laudo mais esquisito.  Uma equipe de legistas examinara os corpos e concluíra que nenhum dos Riddle[s] fora baleado, envenenado, esfaqueado, estrangulado, sufocado ou, pelo que sabiam, sofrera qualquer tipo de violência.  Com efeito, continuava o laudo, em tom de inconfundível perplexidade, os Riddle[s], tirando o fato de que estavam mortos, pareciam gozar de perfeita saúde.  Os legistas observaram (como se estivessem decididos a encontrar alguma coisa errada nos cadáveres) que cada membro da família tinha uma expressão de terror no rosto — mas, segundo afirmava a frustrada polícia, quem já ouvira falar de alguém morrer de pavor?”
     Agora, leiamos um trecho de Helena, de Machado de Assis, o maior escritor que o Brasil já teve:
     “O conselheiro Vale morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1850.  Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta, — segundo costumava dizer, — e quando se preparava a ir jogar a usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo.  O doutor Camargo, chamado à pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos da ciência; o padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da religião: a morte fora instantânea.”
     Nos dois trechos é possível encontrar o humor com que sua mãe e Machado de Assis tratam a questão da morte.  Ao lermos: “...tirando o fato de estarem mortos, pareciam gozar de perfeita saúde”, e ao lermos: “...nem chegou a tempo de empregar os recursos da ciência”, notamos a maneira finamente humorada e afiadamente irônica de dois literatos de descrever a morte. Fica claro que esta é inevitável, quer se morra de apoplexia, como o conselheiro Vale, quer se morra vítima da maldição da morte, como a família Riddle.  Ainda que possamos apontar a causa da morte inesperada de alguém, como a do conselheiro Vale, não podemos, paradoxalmente, mesmo com “os recursos da ciência” (ou, no seu caso, Harry, com os recursos da magia) explicar nem evitar a morte.  (Dumbledore bem sabe disso, pois foi ele quem nos contou.)  Os médicos trouxas, de modo pedantesco, usam a expressão falência múltipla dos órgãos (mesmo quando se morre de morte natural), e os delegados de polícia usam a expressão ir a óbito, e no entanto são incapazes de dizer por que morremos e por que o coração bate e o cérebro funciona, ou seja: por que vivemos (como bem observou o pensador e dublador Nelson Machado, cuja voz é muito conhecida dos trouxas brasileiros).
     Poderia eu apontar outras semelhanças de conteúdo e estilo, como os recursos folhetinescos que sua mãe e Machado de Assis empregaram, ou as semelhanças iniciais que existem entre D. Úrsula, personagem de Helena, e tia Petúnia.  Talvez eu tenha decidido, arbitrariamente, enxergar tais semelhanças, mas não creio que elas sejam um sofisma que eu tenha criado e nele caído como os tolos que acreditam nas próprias mentiras por força de repetição: sei muito bem que estou no terreno da teoria.  Entrementes, o conteúdo chama mais atenção do que o estilo.  Quando não o acusam de bruxaria, alegam que você, Harry, mostra às crianças coisas horrendas, que podem arrancar a preciosa flor de sua inocência, das quais a morte é, segundo os que o condenam, a pior.  “A morte, não o sexo, é agora o tabu que violamos — a ‘pornografia da morte’ causa-nos excitação.” (José Luiz de Sousa Maranhão, O que é morte, pág. 10, citado por Maria L. de A. Aranha e Maria H. P. Martins, em Filosofando: Introdução à Filosofia, pág. 370.)  “Escondemos a morte das crianças: esse não é mais um tema de conversa entre pais e filhos, elas não mais participam de velórios e funerais, evitamos que assistam a filmes ou ouçam histórias que trazem a ideia de morte à tona.” (Rosely Sayão.)
     Acho, contudo, que você está mudando essa forma de pensar.  O seu legado, porém, reside na leitura.  Como eu disse, esta foi sua maior magia: fazer uma geração gostar de ler.  E como poderia ser diferente?  Com uma história repleta de mistérios, intrigas, alusões ao preconceito racial e social (trouxas e bruxos, Dursleys e Malfoys) e artimanhas políticas do Ministério da Magia somados aos seres fantásticos, lugares incríveis e personagens verossimilhantes, seria surpreendente se milhões de pessoas não o adorassem.
     Não posso dizer que os brasileiros gostam mais de você do que os britânicos, mas acho que aqui sua repercussão foi mais benéfica, porque aí desde cedo as crianças (trouxas e bruxas) leem e, segundo as minhas fontes, estudam latim, o que não acontece aqui.  O Ministério da Educação do Brasil é tão burro e mesquinho quanto o Ministério da Magia foi em 1995 (ano em que acontecem os fatos narrados em seu quinto livro).  O prazer da leitura inexiste nas salas de aula brasileiras, e o mecanismo da escrita não é bem trabalhado, pois estudamos uma gramática que não serve para quase nada.  Lamentavelmente, os professores de língua (e os de outras disciplinas estudadas pelos trouxas) se acomodaram: fizeram exatamente o que Dumbledore disse para não fazermos: escolher o caminho mais fácil.  A maioria dos professores de Língua Portuguesa sonha fazer parte de uma classe média que passeia nos shoppings, dirige um carro e leva à família ao zoológico (como os Dursleys).  Não têm paixão, nem a capacidade de inovar, nem de devanear nas aulas.  Consagram ora a alteração, ora a manutenção do status quo: zelam pela mediocridade e pela mediocracia.  Estamos vendo, todavia, que seus leitores cresceram, e muitos deles serão professores.  Muito diferentes, portanto, serão os futuros professores brasileiros de Português: “uma geração de valor mais alto se alevanta.”   
     Os rapazes, sejam eles imberbes ou barbudos, e as moças que cresceram acompanhando-o durante estes últimos anos estão se sentindo um pouco tristes, pois este mês é o da estreia de seu último filme: o clima de despedida de 2007, ano do lançamento de seu último livro, invade o coração de todos como a frialdade dos dementadores, e é repelido pela certeza do seu legado, que, como um patrono, é fruto de pensamentos felizes.  Muitos ainda irão a eventos (tal como acontecia nos lançamentos de livros e filmes de Harry Potter), vestidos como estudantes de Hogwarts (ou mesmo como dementadores, ou Comensais da Morte) ou simplesmente com camisas em que se leia: “Severo... por favor...”.  Termos e expressões como expeliarmus, wingardium leviosa, Grifinória (Gryffindor), Sonserina (Slytherin), Corvinal (Ravenclaw), Lufa-Lufa (Hufflepuff) e Quadribol (Quidditch) entraram para o vocabulário de seus admiradores (vocabulário esse que se ampliou bastante por sua causa) acompanhados por outras palavras que não são neologismos.  Cabe a pergunta: Quem precisa de bruxaria, se existe tanta imaginação?
     Você não lança ninguém ao mundo da bruxaria: lança ao mundo da leitura e da imaginação.
     Eis tudo o que eu queria dizer.  Obrigado, Harry.
     Recado de seu admirador trouxa,
                                                        
                                                                                   Márcio Alessandro de Oliveira.

     P.S.: Dê meus parabéns a Hermione pela excelente tradução de Os Contos de Beddle, o bardo: graças a ela agora sei que os contos de fada foram alterados para se enquadrarem na ideologia dos tempos posteriores ao seu fazimento.
     P.P.S.: Gostaria de que sua mãe fosse mais cuidadosa ao apoiar instituições de caridade: a mão que dá é a mão que toma.

***

APÊNDICE

     Não é muito fácil usar a palavra se: Às vezes, é conjunção condicional; também pode ser pronome apassivador, ou pronome que indique a voz reflexiva; pode ser pronome pessoal; e há casos em que é índice de indeterminação do sujeito (em muitos desses casos, está ligada ao verbo por hífen, de modo que é conhecida como partícula se).  No caso da tradução brasileira do primeiro parágrafo de Harry Potter and the Philosopher's Stone, a palavra se indica uma terceira pessoa — como se fosse índice de indeterminação do sujeito: foi posta no lugar do vocábulo você, que, no contexto, seria uma imitação servil do you — e servil a tradução de Lia Wyler não é, conquanto seja fiel (como já ficou dito).  O que se lê é: "Eram as últimas pessoas que se esperaria que se envolvessem em alguma coisa estranha ou misteriosa, etc."  Contudo, talvez não seja correto nem adequado o uso da palavra se.  Uma vez que ela indica a indeterminação do sujeito quando o verbo é transitivo indireto (não-direto), ou quando é intransitivo (não-transitivo), não deve ser usada com um verbo transitivo direto, pois o sujeito não está sofrendo a ação.  Veja-se esta comparação: "Precisa-se de pedreiros", ou seja: "Alguém precisa de pedreiros"; precisar é verbo transitivo indireto, porque quem precisa precisa de algo ou de alguém; é exigida a preposição de: com ela o verbo transfere a ação indiretamente.  Agora, um exemplo com verbo intransitivo: "Morre-se em todos os tempos"; morrer é verbo intransitivo: não transfere a ação: ela é um fim em si mesma.  (O verbo também é pronominal, pois todo verbo ligado a um pronome por hífen o é.)  (A preposição em não indica transitividade do verbo: é apenas parte de uma locução adverbial de tempo, ou seja: de uma expressão que tem valor de advérbio de tempo.  É possível desprezá-la; logo, pode-se ler isto: "Morre-se".)  Nos dois casos o se indica um sujeito indeterminado.  Basta saber a classificação sintática do verbo (se transitivo indireto ou intransitivo).  A voz verbal já não é importante.  Em outras palavras, não é de mister saber se o sujeito é agente (o que pratica a ação; voz ativa), paciente (o que sofre a ação; voz passiva, que pode ser sintética ou analítica) ou reflexivo (o que sofre e pratica a ação ao mesmo tempo, como na frase: "Ela se ama"; voz reflexiva).  Só é imprescindível ter em mente a voz verbal (além do tipo de verbo) quando o se está ao lado de um verbo transitivo direto, como neste exemplo: "Esperam-se notícias" (voz passiva sintética, ou pronominal), isto é: "São esperadas notícias" (voz passiva analítica).  Quem espera espera algo ou alguém: a ação é transferida sem preposição.  O sujeito (notícias) sofre a ação de ser esperado: a voz é passiva: a palavra se é pronome apassivador.  
       Ora, esperaria é forma verbal de esperar, que é verbo transitivo direto, e não indireto.  Portanto, muito melhor seria ler isto: "Eram as últimas pessoas que alguém esperaria ver envolvidas em alguma coisa estranha ou misteriosa, etc."
       (Há casos em que esperar é verbo transitivo indireto, como na oração: "Esperarei por você", mas não é esse o caso de nenhum dos parágrafos anteriores, nem mesmo daquele em que se lê o trecho vertido por Lia Wyler.)
     Não é este um comentário gramatiqueiro: é só uma observação feita a título de curiosidade (observação esta que não pôde ser feita na Mensagem por causa da falta de espaço).  Não há intenção de reclamar de forma rabugenta.  Podem as questões de gramática não ser imprescindíveis, mas são importantes.

                                             Duque de Caxias (RJ), 11 de novembro de 2012.  

     

Teresópolis, 2011.

Crônica

OS MARIMBONDOS
Por
Márcio Alessandro de Oliveira

     Insetos e vermes em geral são caçados e exterminados (ainda que se salvem as minhocas e as borboletas).  De todos eles, os marimbondos são os que tenho em pior conta.  Detesto-os.  Nunca conheci ninguém que gostasse deles.  Não são como as abelhas, nem como as formigas, que, apesar de serem mortas ou simplesmente espantadas, não fazem mal quando não atacadas (e ainda produzem coisas muito boas, como é o caso das abelhas, que fazem o mel com que nos empanturramos).
     Há muitos bichos de que não gostamos.  Como exemplos, temos ratos, moscas e baratas, esses seres imundos transmissores de doenças.  O tipo de fama que têm é o extremo oposto da que têm baleias e golfinhos — cuja carne nós, ocidentais, não nos atrevemos a comer (embora bois e galinhas sejam abatidos e tenham a carne preparada de todas as formas) — e micos-leões-dourados (estes, sim, devem ter algo muito especial, já que é gasto tanto dinheiro para que não tenham o mesmo fim que os dinossauros).
     Gosto de muitos bichos.  Mas dos marimbondos não: estarão sempre em minha lista negra.  Contarei por quê.
     Quando eu contava sete anos (em 1997), havia em casa de minha avó paterna um casulo de marimbondos no galho de uma árvore muito próxima de um muro, que delimitava um dos terrenos vizinhos, onde residia uma menininha com quem eu brincava. Sob o galho, passavam os vizinhos dos fundos.  Eu não teria dado atenção ao covil de insetos, se não fosse por causa da menina.  Na ocasião, estava me bisbilhotando; então ela se sentou no muro, cumprimentou-me e apontou para o casulo.
     — Sabe o que é aquilo? (perguntou-me).
     Balancei a cabeça em negação.
     — É um casulo de marimbondos.  Você já viu um marimbondo antes?
     Balançando a cabeça, neguei pela segunda vez.
     — Bem (continuou ela), eles são perigosos: picam até quando não são atacados.    Não se deve chegar perto deles.
     — Então deveriam tirar o casulo dali (disse-lhe).
     –– Seria perigoso!
     Com o rosto iluminado, subitamente desceu do muro, e, em menos de cinco segundos, voltou a sentar-se nele segurando uma pedra.
     — Tem coragem de atirar esta pedra no casulo?
     — Não seria maldade?
     –– Aqueles insetos não fazem bem a ninguém (argumentou ela).  Você faria um favor a todos nós se acertasse esta pedra no casulo.
     — E se eles me picarem?
     — Você só será picado se for tolo: basta correr para não levar uma ferroada.
     Até aqui pensará o leitor que tomei a decisão correta; que recusei a proposta de minha amiguinha de infância.  Revelo que não.  Apesar de nunca ter sido um menino mal — pelo menos não um que desse pontapés nos cachorros da rua ou que puxasse e rodasse os gatos da vizinhança pelo rabo — aceitei a pedra de minha antiga vizinha (talvez com medo de que me julgasse medroso se eu recusasse), e a atirei.
     Quando o alvo foi atingido, ele caiu.  Do casulo, saíram vários marimbondos.  Abobalhado, não corri como fora sugerido: fiquei olhando um dos meus antagonistas voar até mim e picar-me a testa.
     Dizem que, de graça, aceita-se até injeção nessa parte da cabeça, mas eu teria dado qualquer moeda para não levar aquela picada de marimbondo: doeu muito mais do que qualquer injeção.
     Como vemos, quem estava errado era eu, e isto talvez faça com que seja possível concluir que eu não deveria ter raiva de marimbondos.  Acontece que, quando vejo um, ele está voando ameaçadoramente ou picando uma pobre vítima. Mas não pense mal de mim, leitor: sei que fui covarde ao atirar a pedra.
     "Ora, você mexeu com a Mãe Natureza”, dirá o leitor precipitado, “e ela revidou.  É a terceira lei de Newton!"  Mas eu discordo.  Primeiro: não acho que fui picado por causa da fúria da Mãe Natureza, pois acredito nesta entidade tanto quanto acredito no Capitão Planeta.  Segundo: a terceira lei de Newton vale tão só para a Física: qualquer interpretação que lhe dermos fora dessa área do saber será uma deturpação. (Isto, aliás, já aconteceu com uma frase de Maquiavel: "Os fins justificam os meios". Esta frase significa que o Estado justifica o povo, e não o contrário; e, por isso mesmo, o primeiro tem o direito de governar o segundo.)  Graças à interpretação errônea da terceira lei de Newton (que já é conhecida, fora do campo da Física, como "lei do retorno") nasceu uma superstição dos tempos atuais.
     Mas suponhamos que a Mãe Natureza exista e tenha tido realmente um papel determinado por uma "lei".  Quem a teria provocado?  Os marimbondos ou eu?  Eu fazia (e ainda faço) parte da natureza tanto quanto os marimbondos, e eles fizeram um casulo num lugar que, a meu ver, era impróprio.  Eles e eu éramos parte de um mesmo sistema ecológico — sistema esse do qual ainda faço parte: a água quente, o macarrão instantâneo, o ônibus em que entro não me excluem da natureza, assim como também o asfalto e a fumaça dos carros não excluem os centros urbanos: a "selva de pedra" não está tão distante da fauna e da flora, só que não vemos isso.
     A verdade é esta: acontecem terremotos, erupções e maremotos; chuvas torrenciais alagam cidades, caem trombas d’água; e meninos jogam pedras em casulos de marimbondos; e, se tiverem bom caráter, aprendem a não subjugar arbitrariamente os mais fracos.  O marimbondo que me picou, aliás, poderia muito bem não ter feito nada, assim como eu poderia nunca ter atirado aquela pedra; portanto, não se trata de nenhuma lei de Newton, e sim de estatística (que é uma coisa que adoramos usar para respaldar opiniões e informações), de probabilidade.  Mas enxerguemos outra coisa óbvia: Todos os fenômenos naturais já ocorriam antes da primeira Revolução Industrial.
     Ora, se terremotos, erupções, maremotos, chuvas torrenciais e trombas d’água já ocorriam muito antes da primeira Revolução Industrial, por que dizemos tanto que a Terra está mudando por causa do aquecimento global?  Por vaidade: a reputação de antagonistas da natureza que temos é mais uma conseqüência do nosso senso de superioridade.  Já atribuímos a nós mesmos as piores características; é até natural que nos culpemos tanto, uma vez que nos achamos vis.  Não foram poucas as vezes em que ouvi alguém dizer:
     — O pior ser que existe é o ser humano.
     Quando alguém fala isso, está falando mal de si mesmo. 
     "Falemos mal, mas falemos de nós."  Será isso?  Será que, de alguma forma, essa ideia enche nosso ego?  Sabemos que uma casa pode ser desmantelada pela natureza, assim como um casulo de marimbondos.  Obviamente, ninguém constrói nada esperando um desastre, nem tampouco espera morrer por causa de um.  Da mesma forma, marimbondos não fazem casulos para que depois alguém os destrua a pedradas.  Será mesmo que podemos ser responsáveis por catástrofes sem o uso de armas de destruição de massa?
     Outro fator para crermos que somos culpados por desastres naturais são a Ciência e os jornais.  Os dois fazem promessas de danação eterna (para usar a expressão do dublador Nelson Machado), e vaticinam que o nível dos oceanos irá subir, como se o Apocalipse estivesse a caminho. "Ela [a Ciência] promete dor, morte, calor, inundações." (Nelson Machado, ELA!, Mudando de Assunto (página de Internet).)       "De todas as formas de fé religiosa, a fé n’Ela, A Ciência Moderna, é a mais inexplicável." (Nelson Machado, idem, ibidem.)
     Talvez nem mesmo os marimbondos sejam tão maus como penso.  De qualquer modo, nunca gostarei deles.  É certo, porém, afirmar o seguinte: eles não podem saber onde é ou não é seguro construir moradia, mas nós podemos.
Teresópolis, início de 2011.

Crônica

O NAMORO NA INFÂNCIA

Por

Márcio Alessandro de Oliveira
  
     Ano passado (2010), no Terceiro Distrito de Duque de Caxias, durante a aula de um curso de inglês que fazia aos sábados pela manhã, fui presenteado (por assim dizer) com uma história que dá assunto a este texto.  Antes de iniciar a aula, a professora contou que o aluno mais novo da classe, um menino de doze anos, trocara beijos com a filha dela no ônibus de uma excursão escolar dias antes: ele era namorado da menina.  O fato de a história se tratar de crianças intrigava a maioria dos integrantes da classe, que era adulta (eis aí algo interessante nos cursos complementares: pessoas mais velhas se reunem numa mesma sala com outras muito mais novas).  Entretanto, era louvável a postura da professora.
     Muito bem-humorada, ela (que não testemunhara a troca de beijos) não só revelou a história como também fez comentários divertidos e favoráveis ao namoro (afinal, o “genro” era bom aluno).  Aquela atitude me fez transbordar de admiração.  Enquanto discorria sobre o namoro da filha, estava a professora mostrando que aceitava as leis da natureza.  Não havia nenhum vestígio de puritanismo em suas observações.
     Mas nem todos pensavam como ela.  Sentada ao meu lado, uma amiga de longa data, que fizera o curso Normal, e dava aulas numa escola para crianças, manifestou uma opinião: disse-me que a escola não devia ter permitido a demonstração de afeto no ônibus.
     — Por que não? (perguntei).
     — Porque ela e ele são muito novos (respondeu-me).
     — Os dois namoram de acordo com a idade deles (retruquei), e não como pessoas de quinze ou dezesseis anos namorariam. Eles não fizeram nada que você não faria no lugar de um deles.
     Ela insistiu:
     — Mas a escola não deve incentivar esse tipo de comportamento.
     — Tampouco deve fazer o contrário (rebati); e, pelo que sabemos, não houve incentivo nenhum. Acho que você está sendo moralista.
     — Mas a escola não deve permitir algo assim (disse-me, convicta).
     — Eles se beijaram no ônibus de uma excursão (falei), e não em sala de aula.
   Ficamos calados.  A professora ainda arrancava algumas risadas da turma e continuava a dar opiniões em favor do namoro da filha.  Por fim, recomecei o debate:
     — Alguns adultos só veem nas crianças a malícia que eles mesmos têm.
   Minha amiga, como quem se agarra ao último fio de esperança, apresentou o último argumento:
     — Você não fez o curso Normal: não é professor; é uma "pessoa de fora".
     Aborrecido, repliquei rapidamente: 
     — Esse argumento é muito frágil! Acaso tenho de ser médico para saber de uma doença ou ter alguma para reconhecer os sintomas?
     Não houve respostas: a professora já começara a dar aula, e nossos cérebros ficaram ocupados com verbos e expressões da terra do Tio Sam.
     Pelo que exponho, é possível concluir que ainda há quem insista em proteger as crianças de supostas perversidades.  Minha amiga não foi a primeira nem será a última a pensar dessa forma.  Só tenho que lamentar.  Ela falou como se a opinião geral e instituída no curso Normal fosse a de que crianças não devem namorar, nem na escola, nem em lugar nenhum.
     Ainda veem-se as crianças como seres inferiores que não têm o direito de se beijar nos lábios.  Mesmo que esse modo de pensar tenha motivos de natureza psicológica e cultural (e não científica), os que têm um diploma de magistério ou de pedagogia, quando não encontram mais apoio nem na lógica nem no bom-senso, agarram-se ao título que têm para que possam dizer o que as crianças podem e o que não podem fazer.  Ao justificar uma opinião conservadora e moralista sobre o que ocorreu no ônibus com a graduação, minha amiga provou que essa tese é verdadeira: Muito embora seu professorado não tivesse nada que ver com seu ponto de vista, ela o usou para condenar a prática do namoro de duas crianças (às quais sou muito grato, porque geraram tema para esta crônica existir) e a sua escola; mas se não fosse professora, pensaria do mesmo modo.
     Não aceito o argumento de que crianças não podem namorar.  Proibi-las de fazê-lo não adianta nada (e só adia o inevitável).  Pode o namoro de duas crianças ser motivo para os pais se preocuparem com promiscuidade ou gravidez indesejada?  (Não que a capacidade de procriar seja um motivo suficientemente bom para impedir namoros: se fosse desse modo, a grande maioria dos adolescentes seria trancada em casa.)
     Há um oceano de indagações a respeito de tudo que cerca o mundo de meninos e meninas que não saíram da infância — um oceano em que muitos pais se recusam a mergulhar, pois preferem um porto seguro, talvez com a justificativa de que devem preservar “a flor da inocência” dos filhos.  E nesse oceano, além de existirem questões sobre a morte, o combate à pedofilia e as já conhecidas “pulseiras do sexo”, forma-se uma onda particularmente forte e categoricamente ignorada, que é a paráfrase de uma pergunta da psicóloga Rosely Sayão: Quando a responsabilidade pela educação sexual dos filhos será assumida pelos pais?
     Talvez isso aconteça quando pararem de se preocupar com a música “Atirei o pau no gato” — que tem sido repudiada há algum tempo — e encararem questões mais sérias.
Teresópolis, início de 2011.

Crônica

MINHA NAMORADA IMAGINÁRIA

Por

Márcio Alessandro de Oliveira

     Não quero que pareça que tenho por modelo o filme A Mulher invisível. Acontece que algumas circunstâncias me levam ao teclado para escrever sobre uma figura: minha namorada imaginária, Sofia.
     Ah!, Sofia!  Que moça fantástica!  E pensar que seu nome é também, num poema que compus certa vez, o pseudônimo de uma menina (real) por quem fui apaixonado dos quinze aos dezenove anos (ela nunca quis nada comigo, devo dizer, mas isto talvez seja assunto para outra crônica). Namorada melhor eu não poderia ter (nem imaginar)!  Sofia é taciturna; portanto, não me incomoda com nenhum falatório frívolo e enfadonho. Não é por menos: ela não tem “melhor amiga”.  Na verdade, não tem nenhuma amiga.  Jamais, então, serei trocado por uma intrometida.  Minha companhia será sempre única.
     Quando estou fazendo algo de que gosto, não me interrompe, e isso me permite dar mais atenção a mim mesmo e a meus passatempos (telejogos, livros, músicas, etc.) do que à própria Sofia. Mas ela não reclama, nem me paga com a mesma moeda: não é como as outras meninas, que acusam os namorados de um tratamento desatencioso que elas também dispensam a eles, embora digam que não.
     Por me amar incondicionalmente, Sofia só vai ao cinema ou a outro lugar quando eu quero: se for meu desejo ficar em casa para ver Guerra nas Estrelas ou jogar The Legend of Zelda: Ocarina of Time, não ficará triste, nem insistirá dizendo que quer sair; tampouco pedirá para eu ver Crepúsculo ao seu lado em vez de continuar com meus entretenimentos.
     Quando saímos, porém, ela não se importa com que eu não lhe pague a merenda (lanche), pois aceita meu elevado grau de avareza (e de que lhe adiantaria fazer o contrário, se não precisa de comer?).  Só lamento que também não possa pagar nada quando passeamos.
     Sofia não dá a menor importância aos objetos atrás das vitrines, e não me pede nada. Joias, flores, vestidos todas essas coisas recebem seu desprezo. Quando vê uma garota bonita, não fica com inveja, nem lhe põe defeitos. E quando eu vejo, também não, pois é muito condescendente com meu gosto pelo estudo da anatomia feminina.  Ela própria é uma maravilha que tenho o prazer de contemplar todas as vezes em que fecho os olhos.  Com grande beleza e corpo esbelto, quase não ocupa espaço em meus pensamentos, nem sobrecarrega minha mente com seu peso.  Reter sua imagem em meu consciente, além de tudo, é muito fácil.  E assim será sempre: Sofia jamais engordará!  Também jamais será feia e velha (e, naturalmente, só eu posso vê-la e ouvi-la, ninguém mais!).
     Por esses motivos, Sofia também sente indiferença pelos tratamentos de estética e emagrecimento, e pelos cosméticos mostrados em revistinhas.  Logo, ela não usa maquilagem, não alisa o cabelo, não passa horas e horas com um secador de cabelo ou com uma máquina na cabeça para fazer permanente, e também não faz as unhas — não só porque não pode tocar e segurar objetos, mas também porque minha imaginação a poupou desses sacrifícios: criei a garota perfeita, cuja beleza não pode ser desfeita, nem aumentada com coisas fúteis e caras. Não sou obrigado a suportar o cheiro de esmalte e de acetona, nem a suportar barulho de secador (muito menos a gastar dinheiro com esses produtos ou a pagar mais pela energia elétrica).  O único cheiro que sinto (ou imagino sentir) perto de Sofia é o aroma que seus poros irreais exalam; e todos os sons que produz são agradáveis.
     Outras coisas também fazem de Sofia uma garota extraordinária.  Poder vê-la sem sair de casa é uma delas.  Outra namorada me faria ir à sua casa (que na verdade seria a dos pais) e passar pela avaliação deles.  Não tenho sogros que nos vigiem como ferozes cães de guarda, o que me permite fazer tudo que quiser com ela.  Mas pior do que a censura de sogros seria ter de entrar no quarto de uma namorada e encarar Luan Santana num pôster pendurado na parede.  Ora, Sofia não admira nenhum outro rapaz além de mim, e o que é mais importante não tem um quarto que não seja o meu!  Durmo com ela sem nenhum incômodo, porque não me dá pontapés, não me empurra, não me tira espaço, não puxa os cobertores, não me esmaga, não solta “ventosidades”, não acorda com bafo de cão, nem com o rosto inchado.
     Não ter de usar dispositivos anticoncepcionais é mais um fator determinante para Sofia ser a garota ideal. Posso ficar despreocupado, porque ela é estéril. Então, jamais me dará uma prole (imaginária) para criar.  E, o que também é magnífico: ela não me transmite doença nenhuma!
     Por não querer que usemos alianças ridículas como alguns namorados andam fazendo hoje em dia, Sofia me poupa do constrangimento de carregar o símbolo de uma união que pode perfeitamente ser transitória.  (Muito mais apropriado seria que quisesse nos ver usando coleiras de uma vez, caso tivesse vontade de exibir enfeites que simbolizassem nosso relacionamento.)
     Contudo, por mais fantástica que seja, não tenho intenção de ser fiel a Sofia a vida toda.  (Se lhe colocar um par de chifres na cabeça imaterial, poderei ficar tranquilo, pois sei que jamais farei parte das estatísticas de namorados assassinados).  Ainda que tenha criado a garota ideal, não pude superar todas as barreiras entre a realidade e a fantasia: Sofia não pode cozinhar, lavar ou passar.  Não é à toa que seu nome é Sofia, e não “Amélia”.  Não pode ser uma companheira, porque sequer tem voz própria: o pouco que diz sou eu quem inventa.  Mas também aqui exponho uma semelhança entre criador e criação: assim como Sofia não serve para as tarefas domésticas, eu também não sei fazer muitas coisas que se esperam de um homem, jovem ou não: não sei usar máquinas de parafusar, não sei instalar chuveiros elétricos, não sei consertar tomadas, não sei montar armários, não sei nem trocar botijões de gás!  Enfim: não sou prendado. Somando minha inépcia a todos os defeitos que faltam em Sofia e que sobram em mim, concluo que mil vezes desgraçada seria a moça (real) que se casasse comigo!
     Aí nota o leitor (e até a leitora, mesmo que esteja zangada comigo) o estado deplorável em que me encontro: não de insanidade, mas de falta de senso de ridículo: preferi descrever uma garota invisível e preencher um espaço com uma grande pilhéria em vez de discorrer sobre coisas mais sérias durante todo o tempo que gasto para redigir esta crônicauma crônica que deve ser tão ruim para alguns amantes da palavra escrita quanto o filme A Mulher invisível deve ser para alguns cinéfilos. Além disso, outras coisas muito mais úteis para a sociedade (ou, pelo menos, para uma família) poderiam ser feitas enquanto escrevo, como, por exemplo, aprender a usar máquinas de parafusar.
     Devo fazer isso em breve.  Terei o total apoio de Sofia, mesmo que ela não exista de verdade. Talvez seja por isso que eu goste tanto dela.