A TARIFA DE ÔNIBUS
(Crônica.)
É este um tema repetido em toda a Baixada Fluminense. O que mais fazemos — nós, caxienses — é ir ao
trabalho de ônibus, de modo que, com exceção da notícia (que não deve nem pode
conter opinião, pois aí deixaria de ser apenas notícia), todo escrito que se propuser
a falar do assunto não terá outro destino senão o de ser um desabafo, que, em
tese, de nada adiantará para alterar o quadro revoltante do transporte público
do município. E se vamos ao trabalho de
ônibus, é impossível, para mim, cronista de quinta classe, alimentar o desejo de
contar novidades. Ora, só há notícia
sobre o preço da passagem de ônibus porque as pessoas querem saber o valor; mas
ter novidades — isso não querem, porque já estão fartas de saber que o preço
mais sobe do que desce. O único
diferencial, portanto, é o valor, que, quer seja divulgado nos jornais, quer
não, terá de ser pago.
Os jornalistas (que criticam a todos, e não admitem que ninguém os
critique *) não devem achar que seja tão meritório escrever uma notícia sobre
tarifa de ônibus: só o fazem porque precisam de preencher o espaço das gazetas
e dos telejornais. É só por isso que o
aumento da tarifa merece publicação.
(“Os americanos (...) dizem que, quando um cão morde uma pessoa, não
temos uma boa notícia, pois esse fato é corriqueiro; agora: quando uma pessoa
morde um cão — aí, sim: temos notícia, da boa.”
(Diógenes Magalhães, Redação com
base na linguística (e não na gramática), pág. 179.))
Tentemos, contudo, conversar sobre a tarifa.
Quem mora no terceiro distrito, como eu, pergunta-se:
— Que devo fazer? Esperar quatro
eternidades na estação de trem (ou de comboio, para o leitor que vivia em
Portugal) e pagar um preço injusto, ou esperar duas eras pelo ônibus e pagar
ainda mais alto preço?
Existe um conjunto de circunstâncias muito engenhoso para que as
empresas de ônibus tenham os negócios funcionando muito bem. Entre elas estão a urina acumulada por
semanas nas estações ferroviárias, a demora do trem e o monopólio de
itinerários.
Pouquíssima é a atenção às estações de trem da cidade. Como se não bastasse a falta de trens, não
são limpas: há sempre a necessidade de prender a respiração nelas (e, no caso
dos hipocondríacos, a necessidade de fazer assepsia). (Isso, aqui, em Duque de Caxias. Magé e Guapimirim, como todos nós sabemos,
têm ainda pior sorte.) Mas a empresa que
administra as linhas de trem é que não está para isso. Estamos a ver: em vez de crescer, limita-se
ela a dar conta de uma demanda que prefere superlotar os trens a superlotar os
ônibus. Prefere? Não, não prefere: a maioria das pessoas que
vai a algum lugar de trem não o faz por preferência, e sim por economia (de
dinheiro e até de tempo, posto que obviamente não há engarrafamento nas
ferrovias).
Deve ser maravilhoso para cada um dos donos de empresa de ônibus. Posso vê-los sorrindo sadicamente, enquanto
seguram uma taça de champanha, numa piscina que fique nalgum bairro “nobre”.
Imaginemos uma conversa entre mim e eles:
Eu: — Não lhes ocorre que talvez estejam prejudicando outros de sua
classe? Não acham que, aumentando o
preço da passagem, estarão impedindo que as pessoas passeiem e gastem dinheiro?
Eles: — Não: são altíssimos os impostos, e o preço da gasolina sobe, e
não podemos nos prejudicar. Além disso,
abaixamos, em Imbariê, a passagem aos domingos; assim você e os de sua classe
podem ir ao Caxias Shopping para
experimentar um pouco da felicidade que o capitalismo oferece. Achamos que seria um modo de fazer com que se
calassem um pouquinho.
Eu: — E nós? É justo que sejamos
prejudicados, mesmo sendo a maioria?
Eles: — A vida é assim mesmo.
Eu: — E o mercado de trabalho?
Como iremos trabalhar, se as empresas não quiserem pagar a passagem que
os senhores nos impõem?
Silêncio.
Eu: — Respondam! Estou esperando!
Eles: — Rapaz: Não temos tempo para discutir com crianças de sua idade:
temos de contar os lucros; por isso, vá rodando.
Eu: — Ah!, sei que têm de contar os lucros; certamente já chegaram à
estratosfera! Alguns dos senhores pagam
ao motorista o salário de apenas um funcionário, mesmo que ele tenha de fazer o
serviço de cobrador também. Pouco lhes
importa que ele tenha de dirigir e contar o troco ao mesmo tempo; pouco lhes
importa que, ao fazer isso, coloque em risco a vida de pedestres e ciclistas,
porque nenhum destes é seu filho.
Eles: — São tempos de crise.
Eu: — Crise? Os senhores estão
lucrando! Acabaram de dizer isso!
Eles: — E o que sabe você de economia?
Eu: — O que aprendi na escola, à qual não queriam que eu fosse, posto
que muitas vezes me foi negado o direito de entrar no ônibus só porque eu
estudava em escola pública.
Eles: — É lógico: você não pagava a passagem.
Eu: — Quanto cinismo! E não me
negavam só o acesso à escola: negavam-me o acesso à biblioteca do meu e de
outros distritos também! Logo o acesso à
biblioteca, onde posso ler, que é mais importante que estudar!
Eles: — Por que você quer ler? E
para quê? Esqueça essas coisas: você tem
de trabalhar como assalariado obediente.
Tire carteira de motorista, e deixe currículo numa empresa de ônibus.
Eu: — Prefiro passar fome.
Eles: — Indolente! Você tem de
produzir! E o nosso bem-estar? É o
trabalho que o garante!
Seria impossível continuar. Eles
só chegam a um consenso entre si para que um não tire o monopólio de itinerário
do outro (como ficará dito mais adiante).
Aí está: aos empresários interessam tão só as queixas que fazem uns aos
outros; e fica tudo muito bem. Muito
bem, vírgula, porque quanto mais
passa o tempo, pior torna-se o serviço dos rodoviários, os quais, por não
poderem se rebelar contra a exploração a que são submetidos, descarregam a
raiva nos passageiros, que tentam processar as empresas. Basta ver o péssimo serviço de alguns, que
certamente é fruto da infelicidade.
Tomemos como exemplo um fiscal (veja bem: um fiscal, e não o
fiscal).
Havia pouco tempo (pouco mais de um mês), na Washington Luiz (BR 40),
entrava um sujeito no ônibus para fiscalizar.
O desgraçado punha-se a fazer o trabalho com tanta minúcia, que demorava
mais de cinco minutos (!). Logo os
passageiros passaram a queixar-se: começaram a manifestar pensamentos que só
com muito autocontrole poderiam ficar ocultos, embora nenhum deles tivesse
caído no palavrão. Entretanto, o nosso
herói lançava olhares severos aos lugares de onde vinham reclamações, como se
com isso pudesse intimidar alguém: era irredutível; tanto que até retrucou quando
alguém “atreveu”-se a censurá-lo ainda mais claramente. A gota d’água, todavia, foi certa noite,
quando o referido fiscal começou a contar o número de assentos ocupados num
ônibus que estava completamente lotado.
— Quanta burrice! (bradou um senhor). Não vê que todos os assentos estão
ocupados! Se quer contar, procure o
número de assentos vazios; depois, faça a subtração! Ou o senhor não sabe? Se não, volte para a escolinha!
Zangado, o fiscal respondeu, mas só o fez por fazer. No fundo, estava arrasado, pois sabia que
errara, sabia que tomara o tempo dos passageiros. Devia estar amargurado por fazer um trabalho
que o forçava a repetir uma operação; e quando teve oportunidade de fazer outra
mais simples, não pôde, por causa da força do hábito.
Depois disso nunca mais vi aquele fiscal — o que me entristece, porque
talvez tenha sido demitido; mas também me alegra: é muito bom saber que o
ônibus me levará à Avenida Brigadeiro Lima e Silva passando pela Washington
Luiz sem longo atraso.
Mas se eu, habitante do terceiro distrito, quiser ir ao centro do
município pelo mesmo caminho, não poderei tomar o ônibus de outra empresa, pois
só há uma que faz o trajeto, que é o mais rápido. Às demais resta a Avenida Presidente Kennedy.
Esse é o monopólio de trajeto, esse é o
consenso a que chegaram os empresários.
Pagamos um preço altíssimo, toleramos a petulância dos rodoviários (os
estudantes de escola pública mais que qualquer um), e ainda temos de suportar
calor (na maioria dos ônibus não existe ar refrigerado) e sujeira. Naturalmente, se reclamássemos aos
empresários, eles diriam:
— Mentira! É justo o preço da
passagem; nossos funcionários são felizes; e nossos ônibus, refrigerados e
limpos.
E eu acrescentaria:
— É claro que é justo o preço da passagem, mas só para os senhores, que
não vão a lugar nenhum de ônibus! Os
senhores sempre negarão tudo quanto se lhes disser sobre os absurdos que
existem no seu empreendimento! Nenhum dos
senhores dirá: “É verdade, você e os outros cidadãos estão certos, e nós,
errados: temos de melhorar a qualidade, substituir os micro-ônibus por ônibus
grandes, dar emprego aos cobradores, etc.”
Entro nos ônibus desta cidade todos os dias, porque tenho de ir à
universidade. E é caro fazer isso: meu
dinheiro é pouco; e no entanto tenho de gastá-lo pagando uma tarifa de mais de
quatro reais uma vez por dia (duas, se eu não for de trem, cuja passagem é de
dois reais e oitenta centavos), quatro vezes por semana (não tenho aula às
quintas-feiras). E ainda há as
mensalidades. No Brasil, assim como em
outros países, o universitário deve pagar para trabalhar. Sim, pagar para trabalhar:
estudo é trabalho (premissa maior);
tenho de pagar para estudar (premissa menor);
logo, tenho de pagar para trabalhar (conclusão).
Apesar de tamanha dificuldade, vou à sala de aula assim mesmo, à
noite. No caminho de volta, depois de
descer do ônibus a más horas, com poucas moedas no bolso e calça rasgada, penso
nos assaltos a ônibus que poderiam ter acontecido, e que de fato acontecem,
porque, assim como a tarifa de ônibus, a segurança pública depende da política,
que é cada vez mais cruel para com o povo caxiense.
Não desconfiam os ignorantes que a tarifa que tanto detestam é resultado
da política a que têm aversão. Em outras
palavras, os analfabetos políticos se queixam, mas não sabem que a política é a
raiz de tudo na sociedade, que é “um grupo de indivíduos que explora outro
grupo de indivíduos”. (Machado de
Assis.) Não deve ser difícil ouvir de
alguém que não saiba o porquê das coisas: “Fulano rouba, mas faz.” (Tolice maior não poderia haver.)
Estão chegando as eleições de 2012, mas não há, até onde sei, um
movimento político que se oponha seriamente às empresas de ônibus. Esperemos, pois, que um grupo de candidatos
mostre uma proposta que beneficie os que realmente produzem a riqueza do
município, e não os que dela se aproveitam.
Agora, um último desabafo: Hoje, tenho dinheiro de passagem para ir à
sala de aula, mas amanhã deverei não ter.
Talvez a solução seja vender fósforos.
(*) Na crônica Os gatos, do professor Diógenes Magalhães, diz-se: “Os jornais (que falam mal de todos, e não admitem que ninguém fale mal deles), referiram, há poucos dias, a perseguição que está sendo movida aos gatos (...).”
(Duque de Caxias, 21 de novembro de
2011.)APÊNDICE
Algum tempo depois de esta crônica ter sido publicada no Caxias Digital, subiu de novo o preço da
passagem de ônibus em Duque de Caxias.
No terceiro distrito, paga-se um absurdo quando se vai ao centro do
município.
Dias atrás o preço da passagem das barcas também aumentou, e para
impedir que manifestantes quebrassem o patrimônio da empresa responsável por
elas, a polícia ficou de prontidão perto das roletas. A diferença é que lá o Ministério Público
está investigando o aumento, enquanto aqui... Tudo continua a mesma coisa,
embora tenha sido feito um abaixo-assinado.
Naturalmente, resta aos empresários a
desculpa de que cartões iguais ao Bilhete Único são a solução. Isso é mentira. Com efeito: o dinheiro público — o nosso
dinheiro — é usado para pagar aos empresários o restante do valor que não se
paga com o Bilhete Único — como bem observou um passageiro das barcas ao ser
entrevistado pelo RJ TV. Então, se com um
cartão alguém pagar menos de quatro reais por uma passagem de quatro reais e
noventa centavos, o restante do valor o governo pagará com o dinheiro dos impostos. É falso, portanto, o raciocínio segundo o
qual o passageiro paga menos com o Bilhete Único, cujos créditos também custam
muito, mesmo que com ele a tarifa fique mais "baixa" do que quando
esta é paga com cédulas ou moedas.
***
É absurda a expressão Caxias
Shopping. Se shopping (de shopping center)
não fosse um termo estrangeiro, ele poderia ser usado, desde que fosse
abandonada a sintaxe inglesa; assim: Shopping
de Caxias. Comparem: Biscoitos da
Nestlé, ou: Biscoitos Nestlé (e não Nestlé biscoitos). Como, porém, shopping é um termo estrangeiro, deveria ser substituído por Centro
de lazer (em alguns casos, o termo deveria ser substituído por centro de
compras, ou por algum neologismo que não seja um circunlóquio); logo, Caxias Shopping deveria ser conhecido
como Centro de lazer de Duque de Caxias.
Pensam alguns linguistas que isso é bobagem, que shopping, um anglicismo, foi aceito
porque a língua "evolui".
Estão iludidos: Shopping é uma
palavra perfeitamente substituível, como qualquer outra: só foi aceita porque a
ditadura linguística dos ignorantes desprovidos de personalidade é a que
impera. Para eles, os semideuses
norte-americanos possuem palavras sublimes.
Temos aqui mais uma prova — entre várias — do complexo de inferioridade
dos brasileiros, que é tão grande, que se pode dizer que são macacos de
imitação dos super-homens do norte.
(Quem se detiver para ler Redação
com base na Linguística (e não na Gramática) e Língua, Linguagem, Linguística..., do professor Diógenes Magalhães,
entenderá o que estou dizendo. Aquele
competentíssimo linguista realmente sabe usar o bom senso; e conhece muito bem
a Língua Portuguesa.)
Contudo, não me restou escolha: tive de usar, ainda que a contragosto, o
nome Caxias Shopping.
(Duque de Caxias, 11 de novembro de
2012.)
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