O ser humano é dotado de cognição,
linguagem e sentimentos. A linguagem
verbal (a língua), em sua modalidade oral, é adquirida por condicionamento. Não se pode
dizer o mesmo do choro e da excreção, os quais são natos, pois exigem estímulos simples. Isso quer dizer que um bebê não tem de
testemunhar que as pessoas chorem ou soltem resíduos corporais inúteis e
repulsivos para chorar ou excretar. Mas
a fala, esta exige estímulos condicionados. Em outras palavras: O indivíduo só começa a
falar porque outras pessoas falam ao seu redor.
E com a fala vem um conjunto de regras de formação, seleção, combinação
e significação de palavras: a gramática.
Sendo a língua um conjunto de vocábulos (que são signos linguísticos),
não pode prescindir de regras de estruturação e funcionamento.
A criança tem de ir à escola para
receber o ensino formal do idioma. No
início, faz isso porque precisa da modalidade escrita dele (língua ensinada),
que é diferente da modalidade oral (língua adquirida). Frise-se isto: a língua falada é aprendida por
condicionamento (como já ficou dito), ao passo que a escrita é formalmente
ensinada. É esta uma das maiores diferenças
entre falar e escrever (deve ser a maior de todas). Assistindo às aulas de Português na escola, a
criança que já tiver sido desasnada verá, até à adolescência, a sua gramática
adquirida coexistir com a gramática normativa, que é prescritiva, e que é
baseada em regras cultas de uso do idioma.
Tais regras são observadas nos textos dos bons escritores, os quais se
orientam pelos livros de gramática. Cai-se
na velha pergunta (feita pelo professor Pasquale Cipro Neto num programa
televisivo): Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha? Foi Fernão de Oliveira quem redigiu a
primeira gramática portuguesa. Antes da
sua elaboração Portugal já tinha uma literatura própria (que o diga o professor
Diógenes Magalhães, autor de Redação com
base na Linguística (e não na Gramática)).
Significa isso que é possível escrever sem um livro de gramática. Contudo, ser possível não é ser recomendável. Se foi redigida uma gramática, houve necessidade. Afinal, quem escreve precisa de orientação gramatical. Ressalte-se, em paráfrase, o que foi dito pelo
filólogo e gramático Evanildo Bechara durante uma conferência da Academia
Brasileira de Letras: Em todos os países considerados civilizados há certa
dicotomia entre a língua adquirida e a língua formalmente ensinada. As crianças francesas chegam à escola falando
a língua oficial do país, mas os pais não abrirão mão de que elas recebam aulas
de Francês, um idioma que tem valor de instituição. Servem-se dele os franceses e os suíços; e a
maneira particular com que cada um daqueles cidadãos usa a língua francesa encontrará
na escola um paradigma idiomático que mantém a unidade linguística do Francês. Ocorre coisa semelhante no Brasil. As aulas de um idioma nacional oferecidas aos
nativos que o tenham como língua materna apresentam a literatura, a leitura, a
produção de textos, a ampliação de vocabulário e a gramática normativa.
Convém saber que a gramática normativa é
uma extensão da adquirida. Com efeito: a
primeira disciplina a segunda: os falantes, assim como os escritores, aceitam o
conceito de correção gramatical.
Estabelecido o conceito, entende-se que os critérios que presidem ao ato
de corrigir têm de ser os sugeridos pela gramática normativa, encontrada em
livros elaborados por estudiosos. É preciso entender que falar bem é um sinal
de prestígio. O mesmo se diga do ato de
escrever bem. E as duas atividades
exigem a supracitada correção gramatical.
Por motivos históricos, muitos indivíduos que falam e escrevem português
não seguem regras de conjugação verbal ao mesmo tempo em que ignoram ou
desprezam normas de flexão de nomes defendidas pelo padrão culto. Se as regras fossem cristalizadas por
condicionamento, mais fácil seria o ensino dos preceitos do idioma, pois não
haveria muitas “novidades” em sala de aula.
(“Não há nada novo debaixo do sol.”)
Não é tarefa simples fazer com que o aluno respeite os princípios
gramaticais que acolhe a norma culta.
(Essa norma é um modelo de uso da língua que, para padronizá-la, exige
não só o respeito às regras gramaticais, mas também a adequação de
vocabulário. A adequação é o que
acontece quando o indivíduo conhece e reconhece as situações em que é
altamente desaconselhável usar gírias, regionalismos e palavras de calão.) A dificuldade é tão grande quanto a distância
entre a língua coloquial e a exemplar.
(Parece que há uma pobreza linguística.
Se há mesmo, deve ser vista como sendo a raiz do preconceito e da
antipatia dirigidos àqueles que falam de acordo com a o modelo culto da língua,
que a escola transmite aos alunos “oprimidos” das classes populares sem que se
configure violência. Segundo Sírio
Possenti, eles não perdem nada quando aprendem a norma padrão; ao contrário:
obtêm uma vantagem.)
A gramática normativa não mostra coisas
desvinculadas da realidade do educando.
Ela dá nome a fenômenos textuais que são comuns a todos os que utilizam o
idioma. Todos usam fonemas; todos usam
radicais, vogais temáticas, afixos e desinências; todos usam verbos,
substantivos e adjetivos; todos usam predicados verbais; todos podem ocultar o
sujeito de uma oração; todos podem usar polissíndetos e assíndetos. O que a gramática propõe é que os estudantes
— sobretudo os que serão profissionais da palavra — usem esses recursos de
forma consciente, conquanto a
consciência possa dispensar o registro de batismos (mais valem os
conhecimentos práticos. Pode um indivíduo
da década de 1950 ter tomado consciência de um aparelho que transmite imagens
pela primeira vez sem saber como ele, o aparelho, se chama). Se um redator escrevesse: Fulano ganha bem, pois tem um bom emprego,
já que estudou bastante, poderia dar, se ao seu juízo fosse conveniente, uma
nova redação ao período; assim: Fulano
ganha bem: tem um bom emprego: estudou bastante. A alteração seria estilística, mas ocorreria graças
ao conhecimento do redator, que pode e deve saber que os assíndetos tornam mais
curto o texto (o que não quer dizer que o escriba tem de abusar das
assindéticas). Do ponto de vista da
matemática, a eliminação das conjunções faz que o escrito fique mais conciso;
e se fica mais conciso, fica mais fácil a leitura. A gramática normativa, assim como a prática
do uso do idioma, possibilita que o escritor use assíndetos conscientemente, porque, ao dar nome aos
fenômenos do texto, permite que o indivíduo tenha mais consciência de que existem, posto que é essa a função dos
nomes (explicar-se-á o uso do advérbio).
Ora, quem tem consciência tem consciência de algo. (Diz Paulo Freire que
primeiro vem o mundo, e só depois a palavra.
Se for aproveitado o mote da declaração do educador recifense, poderá
ser dito que primeiro vem o fenômeno, e só depois o signo.) Naturalmente, a denominação de um fato só é
útil quando ele já foi constatado de modo empírico. Se o indivíduo não reconhece na gramática
coisas que ele usa quando escreve, ela será de pouca serventia (ainda que se
possa dizer que o estudo de regras do idioma pode proporcionar boas notas e
invejáveis classificações em concursos públicos, muito comuns numa sociedade
competitiva). E quem não escreve não tem
o hábito de ler livros (uma coisa pressupõe a outra), e quem não tem o hábito
da leitura de livros não tem motivos para esperar que uma gramática preste bons
serviços. (Na biblioteca particular de
um literato e na de um redator deve haver bons dicionários e bons manuais de
produção de textos. Estes últimos devem
ser lidos e estudados sempre por todo aquele que põe os pensamentos no papel ou
na tela do computador. Uma pessoa só
aprende a escrever escrevendo, porém são essenciais as lições dos manuais de
estilo: contêm eles a sistematização da prática, chamada teoria, que deve
orientar e lapidar o procedimento bruto daqueles que começaram a escrever por
gosto.) Aos leitores e compositores de
escritos é dispensável o uso de nomes de qualquer tipo de gramática; todavia,
eles aumentam o grau de consciência (daí o uso do advérbio mais linhas acima). Cabe ao
aluno associar o nome, que faz com que qualquer coisa seja memorável e enunciável, ao
fenômeno.
Pode o professor de Língua Portuguesa,
sabendo que a gramática não está separada da interpretação, usar esta para
tornar mais inteligível a nomenclatura daquela.
(Este raciocínio é inspirado em outro, que é de Bechara.) Ao analisar o período: Como fui àquela cidade, fiz uma visita a uma grande amiga, deve o
docente deixar claro que a primeira oração expressa causa; e se expressa causa,
tem valor de advérbio; se tem valor de advérbio, é adverbial; se é adverbial, é
subordinada; e se é subordinada, está ligada a uma oração principal. A interpretação prestou um serviço à
classificação das orações e, portanto, à análise sintática. Fica evidente que a lógica é uma inestimável
aliada da classificação e da análise de orações. Quando se estabelecem as premissas, é
inevitável a conclusão. Ocorre isso no
estudo da oração seguinte (que é absoluta): Fulano
saiu ontem. Nela a palavra ontem indica tempo passado. Todo nome que indique tempo passado é
advérbio de tempo (premissa maior); ontem
indica passado (premissa menor); logo, ontem
é advérbio (conclusão). Porque o
advérbio nunca é núcleo do predicado, o verbo, que neste caso é intransitivo,
“assume” esse “cargo”. Nota-se que o
predicado da oração é verbal, e não nominal.
(Se o professor de língua usar a interpretação, a lógica e a indução,
que são caminhos pelos quais se chega a um conhecimento, estará ele promovendo
a curiosidade ingênua do educando a uma curiosidade epistemológica? Outra
pergunta: Se a leitura da palavra escrita é uma continuação da “leitura” de
mundo, de que fala Paulo Freire, e se aquela é mais fácil quando a lógica ajuda
a análise morfossintática, poderia a gramática fazer com que a “leitura” de
mundo, que inclui a leitura de enunciados falados, abrisse caminho para o bom
entendimento entre as pessoas, que passariam a interpretar criticamente a
realidade?)
Só há problema no ensino de gramática
normativa, a qual não pode nem deve ser afastada da interpretação e da lógica, quando
ele é um fim em si mesmo, e não um meio para algo maior. Quando uma aula de Português tem como base
apenas a gramática, e não a Linguística (que, como toda coisa abstrata, existe
em virtude da existência de coisas ou seres concretos), acontecem coisas
terríveis. Uma delas é a apresentação da
diferença entre adjunto adnominal e complemento nominal. Ela não é muito importante para a educação
linguística do estudante. Essa educação,
que é tão importante quanto as educações artística e física, não pode nem deve
querer formar nos ensinos fundamental e médio apenas gramáticos, filólogos e
linguistas (embora os futuros gramáticos, filólogos e linguistas tenham de
cursar as séries desses níveis). Mas o
estudo de língua é um estudo linguístico, apesar de o aluno de ensino
fundamental ou médio não ter a obrigação de estudar Saussure profundamente. Não se sugere aqui o estudo de Linguística,
não como se faz na faculdade de Letras ou na graduação em Linguística. O que se sugere é que o professor de língua
aplique os ensinamentos dos bons linguistas (tais como Saussure, Chomsky, Bakhtin
e Jakobson); assim, numa escala mais modesta do que a do ensino superior, será
rico o estudo linguístico feito pelo discente.
Nas aulas de Física, durante as quais se enunciam e se aplicam
conhecimentos da Física, mencionam-se Einstein e Newton; e nas aulas de
Química, em que se enunciam e se aplicam conhecimentos da Química, lê-se o nome
de Pauling. Nenhum aluno de ensino
fundamental ou médio sai desses níveis escolares com o diploma de físico ou
químico. Por que não citar Saussure e
Chomsky nas aulas de língua dos ensinos fundamental e médio? Usar seus conhecimentos enriqueceria qualquer
aula, e os alunos poderiam conhecer os gênios da Linguística de forma parecida
com que conhecem os gênios das outras ciências.
Aplicar a Linguística não é fazer Linguística. Quem faz aquela ciência, que estuda os signos
linguísticos, são os pesquisadores, e justamente por isso é correto dizer que
não existe Linguística em si. Que fique
bem claro o seguinte raciocínio: não há amor em si: há pessoas que amam; não há
tristeza em si: há indivíduos tristes; não há felicidade em si: há pessoas
felizes; e, repita-se, não existe Linguística em si: existem bons e maus linguistas. Parece até que este escrito se desviou do
assunto. Mas não há problema: não se
pode falar em gramática sem falar em Linguística, ciência que estuda uma coisa que
governa o mundo: a palavra. Pergunta-se:
Qual é a diferença entre o bom linguista e o mau linguista? Por enquanto basta saber que o bom cientista defende
o ensino da gramática prescritiva.
As regras gramaticais são requisitos
básicos do respeito à norma culta, que serve de padrão para preservar a língua
e impedir o aumento do hiato da comunicação.
Afinal, atribui-se a ela (a norma culta) a tarefa de garantir que se
entendam entre si os falantes (apesar de existirem os sotaques, os dialetos e
os linguajares, que provam que a língua varia) e os produtores de textos
escritos que usam o português para transmitir mensagens a leitores espalhados
em países africanos. (Estará certo quem
disser que este texto está particularmente interessado pelos usuários do
idioma de Machado de Assis. Embora faça
referência a coisas comuns a línguas que usem a escrita, limita-se, em certos
trechos, a coisas típicas da língua portuguesa e de outras línguas flexivas. Se este trabalho for traduzido para a língua
usada na China, onde há dialetos, o leitor daquele país poderá ficar
ligeiramente curioso, a menos que se prove que os textos escritos em chinês
contenham sutilezas que indiquem flexões.
Essa ideia deve ser fruto de algo parecido com um delírio, porque o
chinês falado não conta com as flexões de gênero, número e grau, mas sim com as
entonações, e o chinês escrito não usa fonogramas, e sim ideogramas.)
No que diz respeito à elaboração de
discursos escritos, o professor enfrenta sempre o problema da falta do hábito
da leitura. Não se pode esperar que os
alunos escrevam bem, não quando não são leitores. Quem não lê não pode pôr no papel os
pensamentos de forma clara: O não-leitor não sabe dar uma sequência lógica às
ideias; e se não sabe fazer isso, não pode fazer a correção gramatical de um
texto seu com base na gramática normativa, mesmo que ele esteja fazendo um
bilhete, um discurso escrito simples.
(Escrever é uma atividade difícil para os leitores; para os que não leem
é tarefa impossível. Redigir nunca é o
mesmo que falar; é impossível escrever como se fala. Sempre há preguiçosos desprovidos de vontade
de produzir um escrito, mas dificilmente se acha alguém indisposto a falar.)
O estudo de gramática possibilita que o
indivíduo compare a língua materna com a língua estrangeira que estuda, porque esta
também conta com verbos, substantivos e funções sintáticas. Uma vez que o adolescente e o adulto não podem aprender um idioma estrangeiro
inconscientemente, como se
estivessem na infância, fase em que aprenderam a modalidade oral da língua
materna sem o esforço intelectual típico da aprendizagem formal, resta a eles o
estudo, que não dispensa uma dose de nomenclatura gramatical.
Por tudo quanto se expõe, conclui-se que
a gramática normativa é uma ferramenta dos profissionais da palavra, como
jornalistas e advogados, e de todos os que não
querem dificultar a comunicação.
(Duque de Caxias, 20 de dezembro de 2013.)
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Entrevista concedida por Evanildo Bechara a Pasquale Neto no Programa Nossa Língua Portuguesa: http://www.youtube.com/watch?v=V_CmUFzGtnU.
Entrevista concedida pela professora Dad Squarisi ao professor Pasquale Cipro Neto no programa Nossa Língua Portuguesa (Parte I): http://www.youtube.com/watch?v=mVkzWnDihzI.
Discurso de Marilena Chauí: http://www.youtube.com/watch?v=e56gaJwr5AI.
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OUTRAS
REFERÊNCIAS
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Discurso de Marilena Chauí: http://www.youtube.com/watch?v=e56gaJwr5AI.