sábado, 21 de dezembro de 2013

GRAMÁTICA PARA QUÊ?


       O ser humano é dotado de cognição, linguagem e sentimentos.  A linguagem verbal (a língua), em sua modalidade oral, é adquirida por condicionamento.  Não se pode dizer o mesmo do choro e da excreção, os quais são natos, pois exigem estímulos simples.  Isso quer dizer que um bebê não tem de testemunhar que as pessoas chorem ou soltem resíduos corpo­rais inúteis e repulsivos para chorar ou excretar.  Mas a fala, esta exige estímulos condiciona­dos.  Em outras palavras: O indivíduo só começa a falar porque outras pessoas falam ao seu redor.  E com a fala vem um conjunto de regras de formação, seleção, combinação e significação de pala­vras: a gramática.  Sendo a língua um conjunto de vocábulos (que são signos linguísticos), não pode prescindir de regras de estruturação e funcionamento.
       A criança tem de ir à escola para receber o ensino formal do idioma.  No início, faz isso porque precisa da modalidade escrita dele (língua ensinada), que é diferente da modalidade oral (língua adquirida).  Frise-se isto: a língua falada é aprendida por condicionamento (como já ficou dito), ao passo que a escrita é formalmente ensinada.  É esta uma das maiores diferen­ças entre falar e escrever (deve ser a maior de todas).  Assistindo às aulas de Português na escola, a criança que já tiver sido desasnada verá, até à adolescência, a sua gramática adqui­rida coexistir com a gramática normativa, que é prescritiva, e que é baseada em regras cultas de uso do idioma.  Tais regras são observadas nos textos dos bons escritores, os quais se orientam pelos livros de gramática.  Cai-se na velha pergunta (feita pelo professor Pasquale Cipro Neto num programa televisivo): Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?  Foi Fernão de Oliveira quem redigiu a primeira gramática portuguesa.  Antes da sua elaboração Portugal já tinha uma literatura própria (que o diga o professor Diógenes Magalhães, autor de Redação com base na Linguística (e não na Gramática)).  Significa isso que é possível es­crever sem um livro de gramática.  Contudo, ser possível não é ser recomendável.  Se foi re­digida uma gramática, houve necessidade.  Afinal, quem escreve precisa de orientação gra­matical.  Ressalte-se, em paráfrase, o que foi dito pelo filólogo e gramático Evanildo Bechara durante uma conferência da Academia Brasileira de Letras: Em todos os países considerados civilizados há certa dicotomia entre a língua adquirida e a língua formalmente ensinada.  As crianças francesas chegam à escola falando a língua oficial do país, mas os pais não abrirão mão de que elas recebam aulas de Francês, um idioma que tem valor de instituição.  Servem-se dele os franceses e os suíços; e a maneira particular com que cada um daqueles cidadãos usa a língua francesa encontrará na escola um paradigma idiomático que mantém a unidade linguística do Francês.  Ocorre coisa semelhante no Brasil.  As aulas de um idioma nacional oferecidas aos nativos que o tenham como língua materna apresentam a literatura, a leitura, a produção de textos, a ampliação de vocabulário e a gramática norma­tiva.
       Convém saber que a gramática normativa é uma extensão da adquirida.  Com efeito: a primeira disciplina a segunda: os falantes, assim como os escritores, aceitam o conceito de correção gramatical.  Estabelecido o conceito, entende-se que os critérios que presidem ao ato de corrigir têm de ser os sugeridos pela gramática normativa, encontrada em livros elaborados por estudiosos.  É preciso entender que falar bem é um sinal de prestígio.  O mesmo se diga do ato de escrever bem.  E as duas atividades exigem a supracitada correção gramatical.  Por motivos históricos, muitos indivíduos que falam e escrevem português não seguem regras de conjugação verbal ao mesmo tempo em que ignoram ou desprezam normas de flexão de no­mes defendidas pelo padrão culto.  Se as regras fossem cristalizadas por condicionamento, mais fácil seria o ensino dos preceitos do idioma, pois não haveria muitas “novidades” em sala de aula.  (“Não há nada novo debaixo do sol.”)  Não é tarefa simples fazer com que o aluno respeite os princípios gramaticais que acolhe a norma culta.  (Essa norma é um modelo de uso da língua que, para padronizá-la, exige não só o respeito às regras gramaticais, mas também a adequação de vocabulário.  A adequação é o que acontece quando o indivíduo co­nhece e reconhece as situações em que é altamente desaconselhável usar gírias, regionalismos e palavras de calão.)  A dificuldade é tão grande quanto a distância entre a língua coloquial e a exemplar.  (Parece que há uma pobreza linguística.  Se há mesmo, deve ser vista como sendo a raiz do preconceito e da antipatia dirigidos àqueles que falam de acordo com a o modelo culto da língua, que a escola transmite aos alunos “oprimidos” das classes populares sem que se configure violência.  Segundo Sírio Possenti, eles não perdem nada quando aprendem a norma padrão; ao contrário: obtêm uma vantagem.)
       A gramática normativa não mostra coisas desvinculadas da realidade do educando.  Ela dá nome a fenômenos textuais que são comuns a todos os que utilizam o idioma.  Todos usam fonemas; todos usam radicais, vogais temáticas, afixos e desinências; todos usam verbos, substantivos e adjetivos; todos usam predicados verbais; todos podem ocultar o sujeito de uma oração; todos podem usar polissíndetos e assíndetos.  O que a gramática propõe é que os estudantes — sobretudo os que serão profissionais da palavra — usem esses recursos de forma consciente, conquanto a consciência possa dispensar o registro de batismos (mais va­lem os conhecimentos práticos.  Pode um indivíduo da década de 1950 ter tomado consciência de um aparelho que transmite imagens pela primeira vez sem saber como ele, o aparelho, se chama).  Se um redator escrevesse: Fulano ganha bem, pois tem um bom emprego, já que estudou bastante, poderia dar, se ao seu juízo fosse conveniente, uma nova redação ao período; assim: Fulano ganha bem: tem um bom emprego: estudou bastante.  A alteração seria estilística, mas ocorreria graças ao conhecimento do redator, que pode e deve saber que os assíndetos tornam mais curto o texto (o que não quer dizer que o escriba tem de abusar das assindéticas).  Do ponto de vista da matemática, a eliminação das conjun­ções faz que o escrito fique mais conciso; e se fica mais conciso, fica mais fácil a leitura.  A gramática normativa, assim como a prática do uso do idioma, possibilita que o escritor use assíndetos conscientemente, porque, ao dar nome aos fenômenos do texto, permite que o indi­víduo tenha mais consciência de que existem, posto que é essa a função dos nomes (explicar-se-á o uso do advérbio).  Ora, quem tem consciência tem consciência de algo. (Diz Paulo Freire que primeiro vem o mundo, e só depois a palavra.  Se for aproveitado o mote da decla­ração do educador recifense, poderá ser dito que primeiro vem o fenômeno, e só depois o signo.)  Naturalmente, a denominação de um fato só é útil quando ele já foi constatado de modo empírico.  Se o indivíduo não reconhece na gramática coisas que ele usa quando es­creve, ela será de pouca serventia (ainda que se possa dizer que o estudo de regras do idioma pode proporcionar boas notas e invejáveis classificações em concursos públicos, muito comuns numa sociedade competitiva).  E quem não escreve não tem o hábito de ler livros (uma coisa pressupõe a outra), e quem não tem o hábito da leitura de livros não tem motivos para esperar que uma gramática preste bons serviços.  (Na biblioteca particular de um literato e na de um redator deve haver bons dicionários e bons manuais de produção de textos.  Estes últimos devem ser lidos e estudados sempre por todo aquele que põe os pensamentos no papel ou na tela do computador.  Uma pessoa só aprende a escrever escrevendo, porém são essenciais as lições dos manuais de estilo: contêm eles a sistematização da prática, chamada teoria, que deve orientar e lapidar o procedimento bruto daqueles que começaram a escrever por gosto.)  Aos leitores e compositores de escritos é dispensável o uso de nomes de qualquer tipo de gramática; todavia, eles aumentam o grau de consciência (daí o uso do advérbio mais linhas acima).  Cabe ao aluno associar o nome, que faz com que qualquer coisa seja memorável e enunciável, ao fenômeno.   
       Pode o professor de Língua Portuguesa, sabendo que a gramática não está separada da interpretação, usar esta para tornar mais inteligível a nomenclatura daquela.  (Este raciocínio é inspirado em outro, que é de Bechara.)  Ao analisar o período: Como fui àquela cidade, fiz uma visita a uma grande amiga, deve o docente deixar claro que a primeira oração expressa causa; e se expressa causa, tem valor de advérbio; se tem valor de advérbio, é adverbial; se é adverbial, é subordinada; e se é subordinada, está ligada a uma oração principal.  A interpretação prestou um serviço à classificação das orações e, por­tanto, à análise sintática.  Fica evidente que a lógica é uma inestimável aliada da classificação e da análise de orações.  Quando se estabelecem as premissas, é inevitável a conclusão.  Ocorre isso no estudo da oração seguinte (que é absoluta): Fulano saiu ontem.  Nela a pala­vra ontem indica tempo passado.  Todo nome que indique tempo passado é advérbio de tempo (premissa maior); ontem indica passado (premissa menor); logo, ontem é advérbio (conclu­são).  Porque o advérbio nunca é núcleo do predicado, o verbo, que neste caso é intransitivo, “assume” esse “cargo”.  Nota-se que o predicado da oração é verbal, e não nominal.  (Se o professor de língua usar a interpretação, a lógica e a indução, que são caminhos pelos quais se chega a um conhecimento, estará ele promovendo a curiosidade ingênua do educando a uma curiosidade epistemológica? Outra pergunta: Se a leitura da palavra escrita é uma continua­ção da “leitura” de mundo, de que fala Paulo Freire, e se aquela é mais fácil quando a lógica ajuda a análise morfossintática, poderia a gramática fazer com que a “leitura” de mundo, que inclui a leitura de enunciados falados, abrisse caminho para o bom entendimento entre as pessoas, que passariam a interpretar criticamente a realidade?)    
       Só há problema no ensino de gramática normativa, a qual não pode nem deve ser afastada da interpretação e da lógica, quando ele é um fim em si mesmo, e não um meio para algo maior.  Quando uma aula de Português tem como base apenas a gramática, e não a Linguística (que, como toda coisa abstrata, existe em virtude da existência de coisas ou seres concretos), acontecem coisas terríveis.  Uma delas é a apresentação da diferença entre adjunto adno­minal e complemento nominal.  Ela não é muito importante para a educação linguística do estudante.  Essa educação, que é tão importante quanto as educações artística e física, não pode nem deve querer formar nos ensinos fundamental e médio apenas gramáticos, filólogos e linguistas (embora os futuros gramáticos, filólogos e linguistas tenham de cursar as séries desses níveis).  Mas o estudo de língua é um estudo linguístico, apesar de o aluno de ensino fundamental ou médio não ter a obrigação de estudar Saussure profundamente.  Não se sugere aqui o estudo de Linguística, não como se faz na faculdade de Letras ou na graduação em Linguística.  O que se sugere é que o professor de língua aplique os ensinamentos dos bons linguistas (tais como Saussure, Chomsky, Bakhtin e Jakobson); assim, numa escala mais mo­desta do que a do ensino superior, será rico o estudo linguístico feito pelo discente.  Nas aulas de Física, durante as quais se enunciam e se aplicam conhecimentos da Física, mencionam-se Einstein e Newton; e nas aulas de Química, em que se enunciam e se aplicam conhecimentos da Química, lê-se o nome de Pauling.  Nenhum aluno de ensino fundamental ou médio sai desses níveis escolares com o diploma de físico ou químico.  Por que não citar Saussure e Chomsky nas aulas de língua dos ensinos fundamental e médio?  Usar seus conhecimentos enriqueceria qualquer aula, e os alunos poderiam conhecer os gênios da Linguística de forma parecida com que conhecem os gênios das outras ciências.  Aplicar a Linguística não é fazer Linguística.  Quem faz aquela ciência, que estuda os signos linguísticos, são os pesquisadores, e justamente por isso é correto dizer que não existe Linguística em si.  Que fique bem claro o seguinte raciocínio: não há amor em si: há pessoas que amam; não há tristeza em si: há indi­víduos tristes; não há felicidade em si: há pessoas felizes; e, repita-se, não existe Linguística em si: existem bons e maus linguistas.  Parece até que este escrito se desviou do assunto.  Mas não há problema: não se pode falar em gramática sem falar em Linguística, ciência que estuda uma coisa que governa o mundo: a palavra.  Pergunta-se: Qual é a diferença entre o bom lin­guista e o mau linguista?  Por enquanto basta saber que o bom cientista defende o ensino da gramática prescritiva.
       As regras gramaticais são requisitos básicos do respeito à norma culta, que serve de pa­drão para preservar a língua e impedir o aumento do hiato da comunicação.  Afinal, atribui-se a ela (a norma culta) a tarefa de garantir que se entendam entre si os falantes (apesar de existi­rem os sotaques, os dialetos e os linguajares, que provam que a língua varia) e os produtores de textos escritos que usam o português para transmitir mensagens a leitores espalhados em países africanos.  (Estará certo quem dis­ser que este texto está particularmente interessado pelos usuários do idioma de Machado de Assis.  Embora faça referência a coisas comuns a línguas que usem a escrita, limita-se, em certos trechos, a coisas típicas da língua portuguesa e de outras línguas flexivas.  Se este trabalho for traduzido para a língua usada na China, onde há dialetos, o leitor daquele país poderá ficar ligeiramente curioso, a menos que se prove que os textos escritos em chinês contenham sutilezas que indiquem flexões.  Essa ideia deve ser fruto de algo parecido com um delírio, porque o chinês falado não conta com as flexões de gênero, número e grau, mas sim com as entonações, e o chinês escrito não usa fonogramas, e sim ideogramas.)
       No que diz respeito à elaboração de discursos escritos, o professor enfrenta sempre o problema da falta do hábito da leitura.  Não se pode esperar que os alunos escrevam bem, não quando não são leitores.  Quem não lê não pode pôr no papel os pensamentos de forma clara: O não-leitor não sabe dar uma sequência lógica às ideias; e se não sabe fazer isso, não pode fazer a correção gramatical de um texto seu com base na gramática normativa, mesmo que ele esteja fazendo um bilhete, um discurso escrito simples.  (Escrever é uma atividade difícil para os leitores; para os que não leem é tarefa impossível.  Redigir nunca é o mesmo que falar; é impossível escrever como se fala.  Sempre há preguiçosos desprovidos de vontade de produzir um escrito, mas dificilmente se acha alguém indisposto a falar.)
       O estudo de gramática possibilita que o indivíduo compare a língua materna com a língua estrangeira que estuda, porque esta também conta com verbos, substantivos e funções sintáti­cas.  Uma vez que o adolescente e o adulto não podem aprender um idioma estrangeiro in­conscientemente, como se estivessem na infância, fase em que aprenderam a modalidade oral da língua materna sem o esforço intelectual típico da aprendizagem formal, resta a eles o es­tudo, que não dispensa uma dose de nomenclatura gramatical.
       Por tudo quanto se expõe, conclui-se que a gramática normativa é uma ferramenta dos profissionais da palavra, como jornalistas e advogados, e de todos os que não querem difi­cultar a comunicação.
                                                                   (Duque de Caxias, 20 de dezembro de 2013.)


      
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

       ALMEIDA, Nílson Teixeira de.  Gramática da Língua Portuguesa para concursos, ves­tibulares, ENEM, colégios técnicos e militares....  9ª edição.  São Paulo: Saraiva, 2009.

       ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires.  Filosofando: Intro­dução à Filosofia.  São Paulo: Moderna, 1986.

       BAALBAKI, Angela; SILVA, Luiza Helena Oliveira da; MARCILESE, Mercedes; FONSECA, Raquel; SILVA, Silmara Dela.  Linguística III (volumes 1 e 2).  Fundação Cecierj: Rio de Janeiro, 2013.

       BAKHTIN, Mikhail.  Estética da Criação Verbal.  (Os gêneros do discurso.)  (Tradução: PEREIRA, Maria Ermantina Galvão.)  2ª edição.  São Paulo: Martins Fontes, 1997.

       BECHARA, Evanildo.  Moderna Gramática Portuguesa.  37ª edição.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

       ________________.  Ensino da Gramática.  Opressão?  Liberdade?  11ª edição.  São Paulo: Editora Ática, 2005.

       CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar.  Português: Linguagens (volumes 1, 2 e 3).  São Paulo: Saraiva, 2010.

       CINTRA, Lindley; CUNHA, Celso.  Nova Gramática do Português Contemporâneo.  5ª edição.  Rio de Janeiro: Lexicon, 2008.

       FERREIRA, Mauro.  Aprender e Praticar Gramática.  Edição renovada.  São Paulo: FTD, 2003.

       FREIRE, Paulo.  A importância do ato de ler em três artigos que se completam.  (Coleção polêmicas do nosso tempo; 4.)  23ª edição.  São Paulo: Autores associados: Cortez, 1989.

       ——————.   Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.  São Paulo: Paz e Terra, 2011.      

       KENEDY, Eduardo; LIMA, Ricardo.  Linguística II (volumes 1 e 2).  Fundação Cecierj: Rio de Janeiro, 2012 e 2013.

       MAGALHÃES, Diógenes.  Língua, Linguagem, Linguística....  Rio de Janeiro: Edições Coisa Nossa, 1995.

       __________   Redação com base na Linguística (e não na Gramática).  10ª edição, Rio de Janeiro: Edições Coisa Nossa, 2008.

       —————.  Reforma (estudos políticos e sociais).  FDC, sem local e sem data.

       —————. Revolução com base na lógica (e não na metralhadora).  Rio de Janeiro: Edições Coisa Nossa, 1994.

       MARTINS, Maria Helena.  O que é leitura.  (Coleção primeiros passos.)  19ª edição (de 1994).  São Paulo: Brasiliense, 2006.

       MEDEIROS, Vanise; SOUSA, Sílvia Maria de.  Linguística I (volumes 1 e 2).  Fundação Cecierj: Rio de Janeiro, 2012.

       ORLANDI, Eni Pulcinelli.  O que é Linguística (Coleção Primeiros Passos).  7ª edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

       POSSENTI, Sírio.  Por que (não) ensinar gramática na escola.  Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1996.  (Coleção de Leituras no Brasil.)


OUTRAS REFERÊNCIAS

       Blog do professor Luiz Rocha: http://luizrochinha.blogspot.com.br/.

       Conferência na Academia Brasileira de Letras: Para quem se faz uma gramática [?], de Evanildo Bechara: http://www.youtube.com/watch?v=wOj1Y3XnwtA.

       Entrevista concedida por Evanildo Bechara a Pasquale Neto no Programa Nossa Língua Portuguesa: http://www.youtube.com/watch?v=V_CmUFzGtnU.

       Entrevista concedida pela professora Dad Squarisi ao professor Pasquale Cipro Neto no pro­grama Nossa Língua Portuguesa (Parte I): http://www.youtube.com/watch?v=mVkzWnDihzI.

       Discurso de Marilena Chauí: http://www.youtube.com/watch?v=e56gaJwr5AI.
























quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A MÚSICA QUE VEM LÁ DE FORA (OU: PROBLEMAS EM CANTAR EM JAPONÊS)

       Alguns (ou muitos) de nós têm o hábito de cantarolar as canções favoritas.  Não importa que os cantores improvisados tenham péssima voz até mesmo para algo que não exige afinação: dominados pela melodia, encaixam nela a letra.  É isso o que acontece comigo — e talvez as pessoas estranhem.  Não que a minha voz seja horrivelmente esquisita (bonita sei que não é).  Acontece que eu canto em japonês.
       O Brasil, uma mistura de culturas e raças, é, todos sabem, o país com o maior número de imigrantes japoneses.  Ao cantar músicas da terra do sol nascente, não deveria um brasileiro correr o risco de receber críticas segundo as quais não se devem cantar músicas cuja letra não se entende.  Pelo visto, isso só é permitido quando se trata de músicas norte-americanas.  Afinal, gostamos de tudo que vem da terra do tio Sam; adoramos macaquear os super-homens dos Estados Unidos.  (Contudo, saber, como não saber, o significado de uma letra estrangeira é um direito, e não uma obrigação.)
       A meu ver, é belíssima a língua japonesa; talvez seja uma das mais belas línguas (não posso afirmar que é o mais belo idioma, pois não conheço todas as línguas do mundo).  Mas, convenhamos: cantar em japonês pode ser engraçado.  Para os brasileiros, certas palavras do idioma nipônico formam legítimas cacofonias (uniões de palavras que formam outras de sentido desagradável ou ridículo).  Vejamos.
       Estou eu pedalando numa rua ladeada por casas (não há ciclovias no município em que moro).  Começo a cantar alto, pois, aparentemente, a rua está deserta, e não me ocorre que os moradores possam se incomodar:
       Omoide wa itsumo kirei dakedo [Bonitas são as lembranças (é o que dizem certas traduções)].
       Aparece um pedestre, que escuta o verso seguinte:
       Sore dake ja ona KA GA SÚKU wa [Mas elas por si sós não satisfazem].
       Se continua a ouvir, escuta, na segunda metade da letra (a canção é Sobakasu (Sardas, segundo as traduções que li)):
       (...) Sore ga atashi no seikaKU DAKARA [É esta a minha personalidade].
       Se, num exercício de abstração, “esquecermos” o nosso idioma por alguns momentos, poderemos achar bonitas as cacofonias, que, nesse caso, deixarão de ser o que são.
       Quem quer trocadilhos obscenos não tem de escutar canções japonesas.  Em verdade, não precisa nem de unir duas palavras para formar uma terceira hilária ou indesejável.  Basta conjugar o verbo computar: comPUTO, comPUTAS, comPUTA, computamos, computais, computam.  Trata-se, aqui, de um verbo defectivo (defeituoso), que não deve ser flexionado nas três pessoas do singular no presente do indicativo.  (Segundo o professor Sérgio Nogueira, o verbo adequar também é defectivo; mas não creio que suas formas finitas do presente do indicativo sejam tão cacofônicas quanto as três do verbo computar).
       O problema da cacofonia é maior quando ela se dá com a união de palavras.  Evitar um verbo defectivo não é muito difícil; todavia, não acho que se possa dizer o mesmo quando temos de evitar o surgimento de um termo com o qual se faça trocadilho.  Se alguém diz: "Vou soCAR ALHO", ou: “Vou-ME JÁ, ou ainda: “Não gosto da polítiCA GOvernamental”, não tem intenção de fazer grosseria...  Quando alguém lê em voz alta um texto cheio de cacofonias, esse alguém pode passar por um constrangimento.  O ideal é que se evitem vocábulos cacofônicos e eventuais junções cacofônicas (lembremo-nos de Machado de Assis: “Há coisas que se não dizem.”), a menos que tenhamos a intenção de fazer humor.
       Isso tudo deixa bem claro que não é justo discriminar a língua japonesa: cacofonias não são exclusividades suas.  Resta, naturalmente, a questão de lidar com o que é diferente.
       Ouvir canções japonesas não rende mais surpresa alheia do que cantá-las, e embora as duas ações não sejam necessariamente crimes de lesa-pátria, há quem ache um despropósito escutar alguém cantar em japonês.  Já li, no You Tube, comentários enfezados sobre uma apresentação da cantora Melissa Kuniyoshi, que, no programa de Raul Gil, interpretou composições japonesas.  Ainda que não se possa negar o talento da menina, cuja voz é muito bonita, houve quem se queixasse do repertório, como quem diz: “Por que uma menina está cantando em japonês no Brasil?  Não é uma atitude nacional nem nacionalista!”  Ora, ouvir o que é estrangeiro não torna o Brasil menos brasileiro, e ter aversão sistemática a tudo quanto vem de fora não ajuda a combater a desnacionalização do nosso país.  Nem tanto ao mar.  É preciso ter equilíbrio, coisa que o nosso povo não alcança.  Quem não gostou do fato de Melissa Kuniyoshi escolher músicas do Japão dificilmente teria se incomodado se ela tivesse cantado uma música da Lady Gaga. 
       — Mas a maioria do público (dirão alguns observadores afobados) não tem ascendência japonesa. 
       — Que raciocínio! (responderei).  Então é preciso ter ascendência chinesa para gostar de macarrão, norte-americana para gostar de hambúrguer e italiana para saborear uma pizza?
       A despeito das cacofonias, o japonês, como outros idiomas, é uma língua eufônica (agradável aos ouvidos): suas colisões, suas aliterações, seus ditongos, seus hiatos e suas ordens vocálica e silábica causam um efeito estético que pode perfeitamente ser apreciado.  Mas, suponhamos que cantar em japonês fosse crime aos olhos da Lei.  Não haveria problemas: eu poderia substituir as letras escritas em japonês por outras escritas em português, e essa ideia já ponho em prática; para isso, faço adaptações.  Algumas traduções (amadoras) de Sobakasu, música de abertura de Samurai X, foram a base para Sardas e Espinhos.  Ninguém se interessa pela letra quando a escuta; ninguém me pergunta: “Que música é essa?”.  Que se pode esperar?  Muitos brasileiros só querem ouvir Justin Bieber.  E são esses brasileiros que mais precisam de adaptações.  Como 95% deles não têm nem um pouco de intimidade com o inglês, já se imaginam as distorções nas letras e os erros de articulação de vocábulos durante as cantorias sob o chuveiro.  É mais cômodo cantar em português.  Entretanto, jamais fariam adaptações, mesmo se tivessem acesso a boas traduções: seriam contra elas: a pobreza de imaginação e o complexo de inferioridade nunca permitiriam que fugissem da subserviência aos estadunidenses.  (Azar o deles.)
       (É perfeitamente viável adaptar canções estrangeiras, ainda que isso seja mais difícil do que parodiá-las com fins satíricos.  Rodrigo Rossi, responsável por Laços de Flor, cantados por Melissa Matos, mostrou-se competentíssimo adaptador.  Foi fiel à ideia e ao contexto de Hana no Kusari, mas não foi subserviente à letra japonesa (nem poderia ser).  Soube descrever a tristeza e a saudade de uma pessoa cujos laços de amizade estão desgastados, enquanto ela está distante da pessoa amiga sem deixar de sentir saudades do passado; daí se deduz que haja algum motivo para a distância, talvez uma mágoa ou uma circunstância que gere um fatalismo, uma conformação, mas não uma conformação absoluta: a “personagem” da letra acredita que “mesmo um deus não vai separá-los”, até porque, em sonhos, tenta “modificar um destino tão sombrio”.  É esse estado de coisas (e de espírito) que se descreve tanto na letra japonesa como na adaptação brasileira (pelo menos é isso o que penso).  Naturalmente, ideias secundárias e certas figuras de linguagem foram substituídas por outras, de modo que fosse desenvolvido o tema da letra.  É um misto de transcriação e criação pura.  Se levarmos em conta a tese da tradutora Lia Wyler, autora de Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil, a letra de Rossi também será original, pois a composição dele não existiria se não a tivesse feito, isto é: se não a tivesse criado.  Graças a ele, aos tradutores e à Melissa Matos, os fãs d’Os Cavaleiros do Zodíaco ganharam um verdadeiro presente, e o patrimônio cultural do país ganhou um novo componente.)
       São nostálgicas as músicas de abertura e de encerramento de desenhos japoneses; e foram o prelúdio para a entrada marginal da música japonesa e até da música de outros países orientais.  Digo marginal porque, com exceção de PSY e Puffy AmiYumi, não houve divulgação nem concertos, a menos que levemos em conta os eventos de desenhos japoneses feitos para grupos numerosos, porém seletos, de fãs ocidentais.
       Quem quer fazer humor com músicas japonesas não precisa esperar que alguém passe de bicicleta.  Basta achar um fã de Dragon Ball Z que esteja cantando a primeira canção de abertura.  A esse fã deve ser dito o seguinte:
       — Chá, lá?!  Então vamos tomar chá!
       O assunto, contudo, é sério.  São necessárias uma educação musical e uma educação linguística.  O Brasil não sabe apreciar o que é seu nem o que é estrangeiro.  Com um povo que não estuda línguas e que não recebe aulas de música nas escolas, fica difícil (ou praticamente impossível) esperar que se aprecie música oriental.  Mas há esperança: Melissa Kuniyoshi foi aplaudida mais de uma vez na televisão.
       Até que isso mude, escutarei manifestações sonoras urbanas com as quais o zé-povinho revela falta de pudor e ignorância.  Apesar desse triste quadro, posso me divertir cantando:
       Minha mãe me falou que eu preciso casar/ Pois eu já fiquei mocinha...
       Isso, sim, é de fazer rir.

                       (Duque de Caxias, de 29 de dezembro de 2012 a 19 de junho de 2013.)

domingo, 27 de outubro de 2013

A CIDADE DOS FILÓSOFOS


       Nas trevas do meio-dia, que haviam chegado depois do sol da meia-noite, sentados em pé num banco da praça do centro da Cidade dos Filósofos, conversavam dois cidadãos, isto é, dois pensadores (que seguravam livros que não eram Bíblias).  Um deles deixou cair uma moeda.  Disse o outro:
       — A gravidade é implacável.  Faz tudo cair.
       — Cair?  No Universo não há teto nem chão, e a Terra está no Universo.
       — Acho (disse Maria) que ela, a gravidade, centraliza tudo.
       Acanhado, eu me aproximei.  Eu precisava de informação: queria passear pela cidade como turista.  Escutei o mais alto deles dizer:
       — Não acha que há coisas mais importantes do que passear?  Por que não tenta usar o senso crítico?
       — E quem disse que eu não uso? (retruquei).
       — Parece que você usa.  Mas precisa abrir mais a mente.
       — Preciso de informação; da minha mente cuido eu.
       — Você é um tolo (disse meu interlocutor).  Não sabe de nada; é um apedeuta.
       Fui ignorado por todos.
       — Você tem razão (disse eu, que tinha percebido a necessidade de mudar de estratégia).  Preciso abrir a mente e usar o senso crítico com base nos seus critérios.
       Vi um enorme sorriso.
       — Você é um rapaz inteligente! (disse).  Guiarei você.
       Assim que terminou de falar, apareceram duas galinhas, que tinham o tamanho de avestruzes.  Montamos.  E começamos a voar rumo ao oeste.  A altura que mantínhamos era de cem metros.
       — Está vendo aquelas casas decadentes?  (perguntou).  Estão no bairro dos marxistas e dos defensores das teses de Foucault.  Estamos vendo o subúrbio.
       As pessoas lá embaixo carregavam livros (que não eram Bíblias).
       Uma fumaça invadiu nossas narinas.  Começamos a rir com uma alegria que não era nossa.  Cada uma das galinhas se transformou num elefante cor-de-rosa.  Quando nos distanciamos, meu guia e eu voltamos à normalidade, e os elefantes também.
       Sobrevoamos o bairro dos filósofos da arte, que expunham a região glútea em direção ao céu enquanto liam Kant.  Afastados, viramos a cabeça e vimos jatos marrons cruzarem o espaço aéreo que acabáramos de deixar para trás.  Olhei para baixo.  Os tais filósofos da arte defecavam apontando para o céu.
       — Por que fazem aquilo? (perguntei).
       — Porque pensam que no céu fica o mundo das ideias.  A intenção deles é adubar aquele mundo.
       Naquele momento, decidi levantar outro assunto.
       — Ninguém aqui lê jornal? (indaguei).
     — Jornal?  Não!  Cada um de nós faz o próprio jornalismo.  A verdade é sempre subjetiva: depende do ponto de vista de quem a vê.  Você pode não ter reparado, mas todo cidadão carrega um bloquinho de notas.
       — Haja tempo livre! (exclamei).
       — E há (afirmou).  O cidadão não faz trabalhos pesados.
       — E quem faz?
       — Os bichos que andam e falam: os pobres, que são escravos.
       — Mas eles não leem Marx e Foucault?
       — Por tantas horas quantas um pobre permaneceria numa igreja (esclareceu ele).  E há sempre um universitário ou um professor nas sessões de leitura.
       Passamos por cima do bairro dos positivistas, onde moravam os burgueses.  As casas eram de três andares; as ruas eram de três mãos; os muros tinham três metros e revestimento de três camadas.
       — Os positivistas gostam de fazer tudo em três etapas (informou o guia).  E o bairro reflete isso.
       Não muito longe ficava o bairro de classe média, em que pousamos.  Assim que desci, um homem pediu que eu apanhasse a carteira que ele deixara cair no chão.  Feito o favor, repreendeu-me:
       — Mal-educado!
     — Fiz algo errado? (perguntei ao guia, que agora estava ao meu lado observando o dono da carteira afastar-se).
       — Fez.  Você fez um favor sem perguntar por quê.  Aqui fazer esse tipo de pergunta é seguir uma regra de etiqueta.
       Havia uma mistura de defensores de Nietzsche com os de Weber e com os de outros filósofos.  Todos discutiam; todos defendiam teses; todos tinham um amplo vocabulário.
       Dizia uma mulher ao meu lado:
       — Meu filho, que tem oito anos, será submetido a uma cirurgia.
       — E o que ele pensa disso? (perguntou a sua interlocutora).
       — Está animado!  Perguntou: “Mãe: Podem filmar para eu ver os meus órgãos internos?  Quero saber como sou por dentro.”  Não sentiu medo!
       — Que idiossincrasia interessante! (disse a outra mulher).
       A uns cinquenta metros de distância, discutiam dois velhos:
       — Estou lhe dizendo: Ninguém vai telefonar para mim.  Estou esperando uma ligação, mas não escuto som nenhum.
       Disse o outro velho:
       — Você está se concentrando no telefonema, mas não no aparelho.  Em vez de dizer: “Ninguém quer telefonar para mim”, pergunte: “Por que o som não sai?”.  Não se concentre na causa, o telefonema: concentre-se no efeito, os sons que o aparelho deveria emitir; assim, chegará à hipótese segundo a qual estão tentando telefonar para você, conforme o pedido que fez há alguns minutos por esse mesmo telefone, mas você não atende por achar que não estão tentando fazer o que pediu, o que se explica com a ausência de sons.
       Depois de dizer isso, o velho tirou do bolso o telefone celular e telefonou para o número do telefone público, que não emitiu som nenhum.  O outro, que esperava uma ligação de outra pessoa, tirou o fone do gancho e ouviu a voz do amigo dizer:
       — Está vendo?  O problema era o telefone, e não quem tenta telefonar para você!
       — Se você tinha um celular (disse o velho segurando o fone), por que me fez usar um orelhão?  Eu podia ter conversado com quem pode ajudar desde o início!
       — Foi uma experiência: eu já sabia que o orelhão tinha um defeito, o de não emitir sons, que é diferente do de não servir para fazer ligação.  Este último defeito, como sabemos, ele não tem, pois você já fez uma ligação e até conversou com uma pessoa, que disse que ligaria para outra, que deve ter tentado telefonar para esse orelhão, e que viria buscá-lo; só que você não atendeu...
       — Está satisfeito?
       — Não: você não pensou filosoficamente.  Se eu não estivesse aqui, você usaria outro telefone.
       — É lógico!
       — Bastava esperar alguns minutos para tirar o fone sem ouvir sons.  Você podia fazer isso esporadicamente; numa das tentativas, acabaria ouvindo a voz da pessoa com quem queria conversar.  Graças a mim você descobriu a verdade.
       — O mundo é cheio de mentiras sociais, como aquela que eu disse ao lhe desejar um bom dia.  Por que se preocupa com a busca da verdade?
       — Você não se preocupa?
       — Não muito.
       — Então você é louco!  Deve ir embora desta cidade.  Recuso-me a conviver com alguém anormal!
       — Só quero que me venham buscar para eu ir para casa!  Não posso tomar condução!  Não tenho dinheiro!
       — Tenho dinheiro, mas não sei se vou dar ou emprestar a alguém que não se importa com a busca pela verdade.
       — Importo-me...  Não com muita frequência, mas...
       — Então responda: Quem veio primeiro?  O ovo ou a galinha?
       — Devo interpretar essa pergunta literal ou metaforicamente?
       — Faça como quiser.
       — Acho que um círculo não tem início.  E penso que a causa age sobre o efeito, que também age sobre a causa.
       Toda a conversa era cansativa.  Notando minha expressão de desânimo, um habitante perguntou:
       — Que foi?
       — São cansativas essas conversas (respondi).
       Silêncio.  Todos olharam para mim.
       — Herege!  (gritou um dos circunstantes).
       Disse alguém ali:
       — Não devem ser usadas as palavras heresia e herege.  São proibidas.
       — Não são, não!  (disse um terceiro indivíduo).  Os filósofos desta cidade não proibiram nada.  Jamais fariam isso!  Essas palavras são apenas altamente perigosas; por isso é desaconselhável fazer uso delas entre nós, que sempre saberemos que não proibimos nada, com exceção do ato de proibir.  Ora, só os idiotas são dogmáticos, e não somos idiotas: somos pessoas que usam o senso crítico!
       — Mas este visitante (disse meu guia) é um caso sério.  Temos de salvá-lo. 
       — Não quero ser salvo.
       Chamaram a prefeita, Maristela Chalá, a qual, conforme o registro dos meus olhos, saiu de uma torre de marfim, que não estava muito longe.  Chegou segundos depois, voando numa estrela vermelha, que servia de prancha voadora.  Disse ela que detesta a classe média, a mesma que a chamara e que a escutava levando pontapés nas nádegas deliberadamente expostas.  Parecia que as pessoas que a convocaram tinham tanto prazer em levar golpes dela quanto ela tinha em aplicá-los.  Depois de ser informada do meu caso, a mulher pôs uma máscara em mim e disse que eu tinha tendências fascistas.
       — A que classe pertence? (perguntou ela).
       — Sou pobre (respondi).  Detesto admitir, mas sou.
       — Não gosta da classe operária?
       — Eu não gosto nem desgosto.  Não sou chegado à luta de classes.
       Horrorizada, disse:
       — Você é uma abominação política!
       — A senhora é neurótica.
       — E você é uma aberração ética!
       — Quero ir embora daqui (disse eu).  Já deve estar na hora da telenovela; não posso ficar...
       — Telenovela?
       Todos ficaram em silêncio.
       — Isso mesmo (confirmei).  Algum problema?
       — Você é uma aberração cognitiva!
       Fui imediatamente expulso da cidade.  Do lado de fora do portão, tirei a máscara e vi-o desaparecer, ou melhor: deixei de vê-lo: Como num passe de mágica, os muros da cidade haviam começado a dar lugar aos contornos de uma enorme caverna.  O portão não tinha razão de ser: no seu lugar havia o vazio, que era, a partir daquele momento, a entrada da caverna.
       Refletindo, cheguei à conclusão de que a Cidade dos Filósofos era a cidade dos pedantes e dos antipáticos.  Era um desperdício de espaço.  Pensei que seria horrível que o resto do mundo fosse igual a ela.  Contudo, como instrumento de segregação, ainda podia ser útil para a humanidade.  Afinal, que lugar poderia ser melhor para intelectuais e para os jovenzinhos de classe média que fumam maconha nas universidades?

                                                                                   
                                                       (Duque de Caxias, 27 de outubro de 2013 (data de publicação); 12 de novembro de 2014 (data da última alteração).)

terça-feira, 30 de julho de 2013

AMARELINHO E LARANJÃO
       Estive pensando...  Vaqueira é a mulher que trabalha como guarda ou como condutora de gado vacum, formado por vacas, bois e novilhos; mas asneira não é a mulher que trabalhe como guarda ou condutora de asnos. Naturalmente, não há nenhum problema. Como diria o professor Diógenes Magalhães, toda palavra é convencional. Convencionou-se que o vocábulo asneira seria sinônimo de bobagem, tolice. E essa convenção é arbitrária e coletiva. Os lexicógrafos sabem disso, e elaboram dicionários respeitando o princípio da arbitrariedade do signo linguístico, defendido por Saussure. Portanto, apesar de o sufixo eira indicar profissão, temos de admitir que, em tese, asneira não designa a mulher que vigie ou conduza asnos. Da mesma forma, cinzeiro designa o lugar de cinzas, e não o homem que com elas trabalha.
       Toda palavra é um signo linguístico formado por uma sequência de sons, e todo signo é uma coisa que está no lugar de outra, de modo que a primeira possa representar a segunda. Assim, elefante está aqui no lugar daquele animal. A sequência de sons é como uma fotografia, uma imagem. Por isso diz-se que ela (a sequência) é uma imagem acústica. Essa sequência também é conhecida como significante, e está ligada ao significado, que, por sua vez, é um conceito, uma coisa abstrata que temos na mente por causa de algo concreto. O elefante não pode ficar na mente. O que nela fica é o conceito elefante. E a sequência de sons elefante (/e/ /l/ /e/ /f/ /ã/ /t/ /i/) não se liga ao animal: liga-se ao conceito, ao significado; este, por sua vez, está ligado ao ser físico, concreto. (Palavras há que designam coisas puramente abstratas. É esse o caso de felicidade, de ódio, de bondade e de outros vocábulos que denominam coisas não físicas, isto é: coisas que não são externas ao corpo e que não se podem experimentar com pelo menos um dos cinco sentidos.  As três coisas mencionadas não são físicas, mas são reais; apenas dependem de indivíduos que amem, que odeiem e se sintam felizes para elas existirem.)
       Diz-se que é arbitrária a ligação entre significante e significado. Se isso é verdade, é perfeitamente aceitável que Pikachu dê lugar a Amarelinho. E Laranjão pode substituir Raichu. Pouco importa que “chu” queira dizer rato, e pouco importa que “pika” indique eletricidade (nem sei se tudo isso é verdade; não estudei a língua japonesa): O Pikachu, um ser ficcional (e concreto a outros seres ficcionais da sua história) não é igual a um rato; portanto, seu nome não deveria ser “Eletrorrato”. Mas, se não é igual a um rato, por que os japoneses usam o nome Pikachu? Porque lhes convém! O nome é uma convenção que não obedece a princípios rigorosamente lógicos. Para os brasileiros e para outras pessoas cuja língua materna é o português é ainda mais conveniente o uso de nomes criados com morfemas da língua portuguesa.  A principal característica do Pikachu é a sua cor. O mesmo se diga do Raichu. (Com o perdão do trocadilho, que raio quer dizer “rai”? Não sei, e as crianças de 1999 também não sabiam.)  Amarelinho e Laranjão teriam a mesma função que Picachu e Raichu: ligar-se-ia cada um deles ao respectivo significado, que é um registro da memória sobre um ser que só existe em ficção.
       Lembro-me da palavra Poltergeist.  A respeito dela, faz o competentíssimo professor Diógenes Magalhães a seguinte consideração: “O que os alemães formaram foi (aproximadamente): barulhofantasma.  Convencionalmente, ficou estabelecido que essa palavra indicaria o provocador de uma série de fenômenos estranhos, ainda não esclarecidos pelos que os estudaram.”  (Língua, Linguagem, Linguística..., página 124.)  E acrescenta (no mesmo livro, páginas 124 e 125): “Trata-se de convenção — mera convenção.  O termo germânico não esclarece nada: o indivíduo que não conhece o caso nunca saberá o que significa Poltergeist, mesmo que conheça bem a língua alemã.  Se, portanto, eu traduzir Poltergeist em, por exemplo, bole-bole, e se a tradução for aceita pelo público, haverá — convencionalmente — uma palavra portuguesa para designar o misterioso ser que dá pancadas na mesa, imita pessoas no andar de cima, tira objetos do lugar, atira pedra sem atingir ninguém, etc.  Será convenção, mera convenção, tanto em alemão como em português.”
       Muitos são os nomes de personagens traduzidos: Pernalonga, Patolino, Sininho, Soneca. Na Bíblia, nomes traduzidos não faltam. James, por exemplo, é conhecido no Brasil como Tiago. Diógenes Magalhães e Lia Wyler defendem a tradução de nomes próprios. Diz a tradutora que é comum verterem-se nomes próprios em livros infantis: é prática mundial. Diógenes aponta muitos nomes próprios vertidos; alguns são estes: Ricardo Coração de Leão, Japão, Alemanha, Inglaterra. Por que não traduzir ou adaptar nomes de criaturas de videojogos e de desenhos animados?
       E o nome dos outros pokemons (não uso acento gráfico: pokemons é palavra oxítona)? Eles são portáteis criaturas. São portaturas (temos aqui uma palavra composta por aglutinação). Os norte-americanos não aceitam os nomes originais. O restante do mundo, porém, aceita os nomes usados por norte-americanos, criados por tradutores, que têm conhecimentos de Linguística, e que por isso mesmo sabem da arbitrariedade do signo linguístico. Podem os estadunidenses usar Psyduck, mas eu não posso usar Psicopato.
       Para terminar este texto, pergunto: Por quanto tempo a Nintendo e os distribuidores de todos os produtos ligados à marca Pokémon (agora uso o acento gráfico) vão impor ao mundo nomes que as pessoas não pronunciam corretamente?
                                                                                     
COMENTÁRIO
       Ao inserir no texto a palavra pokemons, o autor não só desprezou deliberadamente a ideia de que ela não tem plural, como também desprezou a de que não deve ser usada como um substantivo comum (com inicial minúscula).  Além disso, ignorou o fato de acento gráfico e acento tônico serem coisas diferentes; daí o motivo pelo qual eliminou o acento gráfico.  Mas quando fez uso de Pokémon, manteve o acento gráfico, embora pensasse, por ignorar a realidade da diferença entre o acento tônico e o gráfico, que ele (o acento gráfico) não tivesse razão de ser.  Só o manteve porque se tratava de um nome próprio.  (A hipótese segundo a qual os povos de língua inglesa pensem que o acento gráfico (´) deve ser usado para destacar a vogal da sílaba -ké em Pokémon, para o autor, não faz sentido, ainda que ele não tenha conhecimentos suficientes de Inglês para descartar a suposição.  Também não pode dizer, por falta de conhecimento, que o acento não é necessário para indicar uma vogal aberta, função que em língua portuguesa é diferente da de indicar a força da vogal de uma sílaba tônica.)  A conclusão a que se chega é esta: O autor tenta usar uma grafia que esteja de acordo com a prosódia brasileira, mas hoje (6/11/2013) reconhece que isso não era e ainda não é necessário.  Os acentos gráficos podem corresponder aos acentos tônicos.  Estes estão em todas as palavras formadas por mais de uma sílaba, ao passo que aqueles estão em muitas delas, mas não em todas.  Em Xingu há acento tônico, pois a sílaba mais forte é a última; no entanto, não há (não pode haver) acento gráfico.  Tudo isso se aplica às palavras do nosso idioma, mas pode não se aplicar a estrangeirismos, até porque não cabe a qualquer um aportuguesar a grafia de uma palavra estrangeira, mesmo que lhe seja oxítona.  Mas se a decisão foi aportuguesar, que usasse apenas a forma aportuguesada.  Não foi bom usar pokemons e Pokémon, apesar da flexão de número.